“Basta uma moderada recuperação e tudo volta aos excessos de antes da crise”

António Bagão Félix está preocupado com a poupança nacional. Para o ex-ministro das Finanças, não há políticas para estimular o aforro e “tudo favorece o endividamento”.

António Bagão Félix foi ministro da Segurança Social e do Trabalho do governo de Durão Barroso, assumindo depois a pasta das Finanças no executivo do também social-democrata Pedro Santana Lopes. Para o antigo governante, a introdução de um sistema complementar de capitalização - previsto na Lei de Bases da Segurança Social de 2002, que ajudou a criar - é essencial para acautelar as poupanças dos portugueses nos anos da reforma.

Embora tenha havido um crescimento do volume das poupanças individuais em 2017, este continua a ser baixo. Qual a análise que faz da atual situação das poupanças nacionais?

A poupança tem sido a enjeitada da macroeconomia. É recorrentemente subestimada, porque não faz parte da agenda político-mediática, nem faz parte diretamente das bitolas europeias. Mas é de senso comum perceber-se a sua importância para o progresso de um país.

Poupar significa, acima de tudo, renunciar a gastar hoje para consumir amanhã. Isto é, usar o tempo para prevenir, acautelar e promover uma cultura de responsabilidade. Por outras palavras, poupar é uma atitude aliada do médio e longo prazos e adversária do imediato, do efémero e do ilusório. A taxa de poupança atinge valores perigosamente baixos em percentagem do rendimento disponível (em 2017, à volta de 5,4%, quando 15 anos atrás andava por ainda uns já modestos 11%). Ao mesmo tempo, o endividamento – que é como quem diz a poupança negativa – continua em níveis muito elevados, próxima dos 100% do rendimento disponível.

É o próprio sistema que favorece este tipo de comportamento?

Neste momento não há politicas para estimular a poupança, tudo favorece o endividamento. Basta uma moderada recuperação económica e tudo parece voltar aos excessos de antes da crise. Volta-se a não discernir entre utilidade e futilidade, ignora-se a poupança como valor ético, comportamental e geracional. A história repete-se. Com uma diferença: custará cada vez mais… Tudo isto, com um fortíssimo agravamento da taxa de IRS sobre a remuneração da poupança, que, em poucos anos, passou de 20% para 21,5%, depois para 25%, depois para 26,5% e, finalmente, para 28%, ou seja, um agravamento percentual de 40%. De tal modo que, sendo a sua remuneração bruta quase nula e nunca igual ou superior à taxa de inflação, o IRS sobre os juros acaba por incidir parcialmente sobre o próprio capital. Por outro lado, trata-se fiscalmente do mesmo modo, um pequeno aforrador, um grande acionista ou um sofisticado especulador.

E do lado das empresas, o sistema fiscal continua a favorecer os capitais alheios em detrimento dos capitais próprios. Temos mais capitalistas de dívidas do que de capitais.

Pode concretizar?

Há abordagens económicas que contrariam o senso comum. A questão é ainda mais estranha quando se transformam em leis. Refiro-me à recente aprovação parlamentar de um diploma que instituiu a obrigatoriedade de as instituições bancárias refletirem totalmente e em todas as circunstâncias a descida da taxa Euribor nos contratos de crédito à habitação. Até agora, esta descida tinha como limite a taxa de 0%. A partir desta lei, pode haver juros negativos sempre que o valor do spread contratualizado seja inferior à taxa (negativa) Euribor, que serve de referência no mútuo.

Ao mesmo tempo, e numa conjuntura como a actual, quem tem as suas poupanças num banco além de nada receber (em depósitos à ordem e tendencialmente a prazo, em termos líquidos de IRS), ainda pode ter de pagar sob a forma de comissões de vária ordem (manutenção, transferências, etc.), em regra regressivas, pagando percentualmente mais quem menos tem. Em suma, casos haverá em que quem deve ao banco será remunerado e quem poupa terá de pagar!

Aquando da reforma da Segurança Social quis implementar medidas que promovessem a poupança. Conseguiu os resultados pretendidos?

No que se refere ao sistema de pensões, a introdução de um sistema complementar de capitalização, como o previsto na Lei de Bases da Segurança Social de 2002, é necessária como forma de prevenir riscos, de reforçar a poupança intergeracional e de acautelar a menor capacidade demográfica dos sistemas de repartição. É evidente que tal exige gradualismo na adequação entre procura e oferta, e prudência na sua conjugação com a produção de efeitos na Segurança Social pública.

Trata-se de um contrato que preserve o seu alicerce público, mas que não iluda as pessoas através de um Estado totalizante, na saúde e nas pensões. Um “Estado possibilitador”, que tenha um critério social coerente e congruente com uma sólida igualdade de oportunidades, e não com um ilusório igualitarismo. Um Estado Social que não se pode dissociar do sistema fiscal e da sua progressividade.

Como deve ser feita essa reforma?

Uma reforma do sistema deve ser construída com base num sistema nacional que permita a conjugação harmoniosa entre a cobertura pública, empresarial e familiar dos riscos sociais. Tal implica uma abordagem distinta para a gestão da poupança, em que o Estado deve partilhar o risco com as empresas e famílias, numa simbiose de transferências intergeracionais (repartição) e de gestão a longo prazo de prestações diferidas (capitalização).

Entre múltiplas condições, esta viragem exige a introdução cautelosa, mas convicta, de tectos contributivos (o chamado “plafonamento”), o estímulo fiscal à poupança e o aprofundamento de certificação de agências administradoras da poupança e dos sistemas de supervisão pública. No fundo, passar do exclusivismo de um Estado-Providencialista (de prover) para uma organização social mais previdencialista (de prevenir).

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