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Luísa Ribeiro Lopes trabalha há mais de 25 anos no desenvolvimento de projetos digitais, no setor privado como no público. É coordenadora-geral do INCoDE.2030, iniciativa governamental para desenvolver as competências digitais em Portugal, e preside ao conselho diretivo do ".PT", entidade responsável pela gestão do domínio ".pt". É sócia fundadora da Associação para Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação e integrou a Missão para a Sociedade da Informação. Licenciada em Direito, está a doutorar-se em Estudos de Género na Universidade de Lisboa.
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Como vê a representação das mulheres nas profissões tecnológicas?
O que os números dizem é que a representação fica muito aquém do desejado, que seria a paridade ou pelo menos convergência de género. É o que os países e a UE definem nos objetivos para a década digital, a convergência nas profissões TIC.
TIC são Tecnologias de Informação e Comunicação.
Exato, e até seria mais interessante falar em STEM - Ciências, Tecnologias, Engenharias e Matemáticas. Ainda assim, se olharmos para as TIC, ligadas ao digital, temos muito baixa representação, embora até estejamos acima da média europeia.
Mas está a pedir quotas?
Neste momento isso não está em cima da mesa porque seria chocante para o mercado de trabalho: nós precisamos de cerca de 800 mil trabalhadores nas TIC, precisamos de muita gente... E esta é também uma razão para as mulheres optarem por esta área, porque estarão a potenciar o desenvolvimento económico e social. Um estudo da McKinsey de fevereiro diz que se até 2027 duplicasse o número de mulheres em profissões TIC o PIB da UE aumentaria em 600 mil milhões de euros. Portanto, se uma questão de género ou justiça social não chegar para convencer, esta questão económica é mais do que suficiente. Mas gostava de referir que Portugal está até acima da UE, temos 21,9% de mulheres em profissões TIC, quando a média europeia são 19%. Mas sabemos que isto é um problema mundial e que temos de desconstruir rapidamente para atingir este desenvolvimento económico, porque o digital vai estar presente em todas as profissões.
Mas quase 43% dos matriculados em cursos de informática e ciências e matemática são mulheres. O que é se passa entre a formação e o mercado de trabalho?
É verdade que temos um número substancial de mulheres no Ensino Superior, mas se olharmos as que optam pelas engenharias e digital estamos muito aquém do que precisamos. Nas engenharias informáticas e eletrotécnicas, que são essenciais em áreas como computação avançada, blockchain ou IA, temos cerca de 18% de mulheres matriculadas. O que significa que em termos abrangentes estamos quase em convergência, mas porque tem a parte das ciências e matemática. Nas engenharias ou aeroespacial, curso mais ligados a áreas de desenvolvimento de tecnologias disruptivas no digital, o número de mulheres é ainda reduzido.
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As meninas não brincam com código?
As meninas brincam pouco com código. Há um problema de desconstrução de estereótipos que vem da infância. Se a maioria das raparigas não é exposta à tecnologia, desde logo nos brinquedos, como são os rapazes... As raparigas são expostas a brinquedos que têm que ver com o cuidado e os rapazes com áreas mais tecnológicas. Quando não há essa distinção, ambos fazem as mesmas escolhas educativas. E é isso que também trabalhamos em programas como o engenheiras por um dia, que levamos às escolas; e queremos lançar as míni-engenheiras por um dia, para ir ao pré-escolar e básico e desconstruir estas questões tão impactantes do desenvolvimento da sociedade e das oportunidades iguais.
Portugal é 15.º entre os 27 Estados-membros da UE no Índice de Digitalidade da Economia e da Sociedade (IDES). Os progressos relativos de Portugal são, de modo geral, ligeiramente inferiores aos de países homólogos, pelo que há margem para o país acelerar os seus esforços de digitalização. O que falta?
Este índice existe desde 2017 e nessa altura estávamos em 22.º, temos feito progressos. E no que respeita a capital humano até somos 14.º, o 15.º tem que ver com as quatro dimensões: dos serviços públicos, infraestruturas, empresas e capital humano. Mas é verdade que podíamos e temos de fazer mais, não podemos descurar. Até porque temos fragilidades na capacitação das pessoas - a maioria dos que têm competências digitais têm-nas no nível básico ou intermédio; precisamos de apostar forte na capacitação mais avançada e no número de diplomados TIC. E só vamos conseguir ter mais diplomados no mercado de trabalho com esse esforço grande quer nos diplomados quer na requalificação e upskilling de quem já está a trabalhar e precisa de se reconverter. Não é uma formação rápida nem licenciatura ou mestrado, são pós-graduações, microcredenciações que os politécnicos e as universidades oferecem. Há imensas pessoas subaproveitadas ou com subemprego, em funções cada vez menos importantes e que tendem a deixar de existir; e nós precisamos de pessoas nessas áreas. Portanto temos de fazer essa aposta no mercado de trabalho para dar o salto para os primeiros dez da UE, em competências e no resto dos indicadores.
Esse esforço tem de acontecer no upskilling e reskilling e também nas escolas. No entanto, tivemos nesta semana provas de aferição, as primeiras digitais, e os computadores não funcionaram...
Às vezes a vontade que temos de digitalizar depressa não corre tão bem, mas se não arriscarmos nunca conseguiremos.
Mas que passos temos de dar para garantir que corre bem? Digitalizar não é só substituir papel e caneta por computador...
Esta geração já é digital.
Nas cidades.
Sim, há uma diferença grande de coesão territorial. Mas temos de dotar as escolas de equipamento e ligação à internet, mas também de capacitar professores, ter profissionais TIC a trabalhar nas escolas - não há esta carreira específica na administração pública e temos falta de profissionais que, pela remuneração pública, não vamos atrair. Portanto precisamos de quem forme, quem apoie e dê suporte técnico e logístico aos equipamentos, e de apostar nas competências de professores, alunos e toda a classe que anda à volta disso.
A dimensão digital concentra 22,1 % do valor global do PRR. Como está esta execução?
Relativamente à formação temos, por exemplo, um programa que é o Emprego +Digital a correr e já abrangeu mais de 60 mil trabalhadores e desempregados. Na capacitação mais avançada estamos a trabalhar com a AP central e local para dotar os funcionários dessa capacitação, e com as confederações de agricultores, comércio e serviços, empresas e turismo para que os trabalhadores dos diversos setores possam aceder a formação mais avançada e qualificada. Por exemplo, as academias de cibersegurança, que estão em pleno funcionamento nas universidades e politécnicos, estão a acolher estes trabalhadores.
E qual é a maior dificuldade em acelerar esses processos?
Por incrível que pareça, é que num programa como o Upskill - que visa que desempregados ou pessoas em subemprego possam ter uma formação de nove meses no superior, com garantia de emprego numa empresa, salário mínimo de 1200 euros, e ainda a receber subsídio do IEFP quando estão a formar-se... mas temos dificuldade em encontrar pessoas para o programa. A oferta das empresas é superior à procura. Ainda assim, já se formaram centenas de pessoas e já vamos na terceira edição.
Um dos pilares do PRR é a transformação digital das empresas e um ambiente de negócios competitivo. Qual é o caminho a seguir para esta digitalização?
Essa transformação é essencial. O nosso tecido económico continua a ser de muitas microempresas, cuja necessidade de formação - até ao nível dos gestores - é enorme. Mas são empresas que, se põem um trabalhador em formação, deixam de o ter em funções. Portanto precisamos de juntá-las nas suas associações e dar formação ali. A transformação digital é uma questão de vida ou morte. Nós sabemos que quer na utilização de tecnologias na produção ou prestação de serviços quer na digitalização, na oferta de produtos e serviços, é preciso haver canais digitais. O ".PT", durante a pandemia, sentiu as empresas a migrar para a internet, quiseram ter essa montra. Tivemos meses com um crescimento de 60% no registo de domínios. Portanto há vontade, mas vamos de novo bater à questão das competências: temos de apostar na formação de gestores e colaboradores para fazer não uma transição mas uma transformação digital.
Num estudo recente da PwC e McKinsey para o INCoDe.2030 vê-se as profissões onde é prioritária a aposta nas competências digitais e indica-se percursos formativos para profissões que não desconfiamos à partida que o possam ser... Porque é quem um cabeleireiro precisa disso?
Não há profissões sem competência digital. Um outro estudo recente revela que seis em cada dez profissões vão ter intensidade digital grande e hoje todas as profissões, sem exceção, têm componente digital.
E que não se esgota em registar clientes e emitir faturas... Há capacidade acrescida no exercício da profissão de um bombeiro que se digitaliza, por exemplo?
Sim, além do registo em sistema informático, um cabeleireiro precisa de divulgar produtos, saber ter uma aproximação aos clientes com ferramentas digitais como uma app, e muitos se calhar não têm competências que podiam trazer retorno. No caso dos bombeiros, continua a apagar-se o fogo com água, mas a prevenção, a comunicação com as autoridades, com o quartel, com as populações, depende tudo de tecnologias digitais. E eles têm de ter essas competências. Por isso esse estudo olha todas as profissões, da literacia mais básica às soluções mais transformadoras, como a IA, à produção de conteúdos próprios, cibersegurança e em vários níveis, para fazer o mapeamento do que as profissões necessitam para não desaparecerem e estarem mais enriquecidas. Isto é importante também para as políticas públicas. O INCoDe assumiu a liderança do processo porque com este estudo pode traçar-se políticas, dizer que formações precisamos de fazer para termos uma população muito mais capacitada em termos digitais e sem deixar ninguém para trás....
Que desenvolvimentos espera na Inteligência Artificial (IA)? A internet vai ser engolida pela IA?
A internet está numa encruzilhada entre fragmentação e continuidade. Fragmentação porque há blocos geopolíticos que disso gostariam - a net nasceu como algo global, mas o movimento da globalização, em termos políticos e geoestratégicos, não é hoje garantido. Os países deste bloco europeu, mais ocidentais, devem fazer um grande esforço para o impedir, porque é a base de uma internet que deve ser transparente, de todos e para todos. Depois, não creio que a IA vá substituir a net nem o homem, mas sim tarefas repetitivas, de forma cada vez mais óbvia. É importante não pensarmos que conseguimos parar a IA, mas haver alguma regulamentação, e isso passa pela explicação. Nós sabemos como a IA está a ser construída, que dados estão a ser usados e explicar os algoritmos é quase obrigatório. E depois há que fazer uma aposta na ética digital. Nós temos regras de convivência social que cumprimos e passam entre gerações, e de repente estamos a assistir a uma transformação disruptiva, que tem de ter estas regras. Temos de saber estar num mundo que passou a ser virtual. E que a IA está a acelerar muito. A ética, até da forma como as grandes empresas desenvolvem sistemas de IA acessíveis a todos, é fundamental.
E é só a ética que combate a desinformação e o que é falso no algoritmo?
Não, daí a primeira questão, de explicar como se chega lá. Muitos dos dados usados na IA são falsos. É fundamental saber como é que foi criado o algoritmo e que dados são usados. E vamos dar de novo às competências digitais: temos rapidamente de dar formação aos jovens e aos outros, pensamento crítico, pensamento computacional. Claro que já acontecia isso antes de haver internet e IA, quem tinha mais capacidade crítica para análise tinha melhores resultados e chegava mais longe. Mas hoje é tudo tão rápido que o nosso pensamento crítico é invadido por muitas outras fontes, por um manancial de dados, falsos e não falsos. E a forma como tudo isso é trabalhado é o maior risco.
A IA pode pôr empregos tradicionais em risco ou até vai deixar-nos funções mais interessantes?
A IA vai pôr em causa trabalhos que são muito qualificados e que ganham outro valor. Se pensarmos que a IA pode ajudar brutalmente no diagnóstico de uma doença, o que antes era exclusivo do homem, ou olharmos a IA no trabalho jurídico, com a panóplia de leis e contratos que podem ganhar com IA,...vemos que não são as profissões que achávamos óbvias que estão em risco. Mas também há muitas tradicionais que podem estar em causa. Oito em cada dez empregos daqui a dez anos ainda nem existem hoje. A maioria do trabalho hoje também não existia há 20 anos... Por isso é essencial o reskilling.
O ".PT" já recebeu endereços para IA portuguesa?
Já, já tem muitos que referem IA e nós próprios temos uma ferramenta que nos ajuda a olhar os domínios e ver se são registáveis; usamos IA para ganhar em trabalho e fazer que as pessoas não tenham de olhar para os domínios todos, os dados de cada titular. Hoje isso é feito por máquinas e as pessoas estão muito mais contentes a fazer trabalho mais interessante.
A ANACOM diz que Portugal é um dos países da União Europeia em que os preços das comunicações eletrónicas mais têm aumentado... O acesso ao digital em Portugal está condicionado pelas tarifas?
Está, por duas ordens de razão: a primeira é económica e tem que ver com as tarifas. E daí ser tão importante a questão da tarifa social da internet.
Mas é um tema de tarifas ou de salários?
São ambos. Se olharmos para as tarifas fora do espaço português, as da UE comparam muito bem com as nossas, mas os salários não. Depois há o facto de existirem zonas brancas, e aí a Anacom está a trabalhar mas é urgente e essencial endereçar esse tema. Se dizemos que queremos uma sociedade cada vez mais digital, em que todos tenham essas competências, temos então de garantir o acesso. E também a capacidade de essas pessoas adquirirem equipamentos e aceder à internet. Porque um pacote não é muito barato para os nossos ordenados e sobretudo para quem recebe pensões ou RSI. Como podem essas pessoas dar-se ao luxo de ter um tablet com internet?
Não estava na hora de clarificar a oferta e não penalizar a contratação isolada de serviços como a internet?
Uma das responsabilidades dos operadores é terem serviços diversificados. Mas todos têm oferta só de internet - claro que o valor é sempre maior. Eu julgo que é importante também pacificar esta relação com os operadores e junto deles encontrar soluções que sirvam o país em todas as dimensões. Para empresas e cidadãos.
Mas pacificar através da Anacom ou da tutela das infraestruturas?
Temos de puxar todos para o mesmo lado. E o ".PT" tem também uma relação com os operadores, que são nossos agentes de registo de domínios; há cinco anos conseguimos, junto de todos, chegar a uma descida, com valores iguais parta todos os operadores independentemente da sua dimensão - antes, os maiores tinham possibilidade de oferecer descontos que os outros não tinham. Hoje todos, sejam grandes ou pequeninos, pagam o mesmo. Não foi fácil mas temos de fazer convergir interesses divergentes. Este é um trabalho essencial para termos um país mais coeso em termos digitais.
Os registos no .pt tiveram um recorde no ano passado, ao ultrapassarem os 150 mil sites. Este crescimento não está a ser camuflado pelo site automático Empresa na Hora?
É verdade que alavancamos os nossos números com a Empresa na Hora, mas também os analisamos retirando isso. Temos desde 2015 um protocolo com o Instituto de Registos e Notariado em que todas as empresas criadas nesse modelo têm imediatamente acesso a um domínio gratuito no primeiro ano e o que constatamos é que muitas são criadas mas depois não abrem atividade ou, fazendo-o, depois não se digitalizam e deixam cair o domínio. Mas mesmo retirando a Empresa na Hora, somos o domínio de topo da Europa, o que mais cresceu em 2022. Temos estado no Top 3 nos últimos dez anos e no ano passado fomos os primeiros em crescimento. Significa que as empresas estão a optar por ter um site e a optar pelo ".PT", que é mais fiável e seguro e um marco de portugalidade.