O mercado automóvel nacional tem manifestado uma bipolaridade incomum, alimentada sobretudo pela crise dos semicondutores - que muitos especialistas do setor acreditam que se possa revolver em breve - e pela consequente falta de veículos novos para entrega. Uma situação que fez disparar a procura dos usados... e o seu valor. Em 2022, o preço de um carro com um ano chegou a apreciar 20%, contrariando a lógica comum do mercado. O cenário para 2023 deverá ser o de maior normalização nos preços, mas será a resolução dos problemas no mercados de novos a ditar a reação nos usados.
"Este ano, é expectável que a situação dos veículos novos melhore, mas não vai ainda normalizar. Tudo aponta para a existência de duas velocidades no abastecimento de viaturas novas. Uma coisa é o abastecimento dos segmentos médio, médio-alto e alto. Outra é o das viaturas de segmentos mais baixos, com prejuízo para os últimos", explica Roberto Gaspar, secretário-geral da Associação Nacional das Empresas do Comércio e da Reparação Automóvel (ANECRA).
Segundo Roberto Gaspar, sobretudo nos segmentos mais baixos, os carros "estão muito caros", devido a "exigências da Comissão Europeia em termos de segurança, por exemplo". Em consequência, aponta, "haverá muita dificuldade em comprar carros novos dos segmentos médio-baixo e baixo", tratando-se de um problema com o qual algumas marcas já estão a debater-se face a uma faixa da população sem posses para um veículo novo. "Muitas dessas pessoas serão conduzidas para um usado. Os próprios fabricantes perceberam isso e estão a lançar projetos na área dos usados, porque não querem perder esses segmentos, nos quais sabem que não vão conseguir responder", seja por se tratar de segmentos cada vez menos rentáveis (nos quais deixaram de ter presença), seja por preferência estratégica aos modelos em que ganham mais por cada venda, sobretudo, numa fase em que ainda há problemas de abastecimento de componentes.
"Temos marcas como a Renault, que em Espanha abriu uma fábrica para usados de dois a sete anos. Limpam o carro, desmontam tudo, higienizam, tratam da carroçaria, do motor, dos estofos, de tudo. E saem de lá como novos. Já fotografados e com vídeos para facilitar a promoção dos concessionários, com o custo inserido numa lógica de economia de escala. Os fabricantes estão a dar passos nesse sentido, porque percebem que vão ter muita dificuldade de abastecimento deste segmento médio-baixo e médio", diz.
Preço dos usados tende a cair
Em 2022, a valorização dos veículos usados atingiu proporções inéditas, chegando a apreciar 20% ao fim de um ano no mercado. Mas o secretário-geral da ANECRA acredita que esta realidade tenderá a abrandar ao longo de 2023. "No último ano e meio, os preços dos usados têm vindo a subir. Houve esse efeito: falta de carros novos, pressão sobre os usados. Depois, os próprios comerciantes dos usados tinham de reabastecer stocks e havia falta de carros. Como as gestoras de frotas e as rent-a-car não estavam a colocar os seus carros no mercado, logicamente, havia falta", esclarece. "Isso levou ao efeito básico da economia, a lei da oferta e da procura. E, portanto, os preços dispararam. Em média, subiram na ordem dos 20% ao fim de um ano. Estamos a falar de um bem que devia depreciar e que, num processo absolutamente inusitado, apreciou", vinca, indicando que a tendência é para a normalização, mas não imediata, com fatores como a inflação, a subida das taxas de juro e a quebra na confiança dos consumidores a causar já um abrandamento acelerado da procura desde setembro.
"No preço ainda não se refletiu. Mas, mais tarde ou mais cedo, é expectável que aconteça. Se a procura continuar nestes níveis, o normal é também os concessionários que vendem carros usados baixarem o preço para venderem e garantirem a rotação do stock. Para não ficarem com um carro que devia estar 30 dias por 60 - isso é perder dinheiro. Em muitos casos, preferem fazer campanhas ou uma promoção e colocar o carro na rua. Isso significa baixa de preço."
Por outro lado, em 2022, os usados importados representaram quase 50%. Manter-se-á esta tendência? "É normal que sim", afirma Roberto Gaspar. "Até porque vamos entrar num ano em que o mercado dos novos tenderá a melhorar um pouco, nomeadamente, porque vão começar a ser entregues muitos carros de encomendas feitas há meses. Em tudo o que sejam gestoras de frotas, começa a haver mais oferta. Mas continuará a ser muito importante também o mercado de importação. Provavelmente, não a níveis a que assistimos no ano passado, porque aí havia uma inexistência absoluta de carros novos", refere.
Com os elétricos a serem uma opção cada vez mais procurada, o mercado de usados neste segmento segue a tendência: 45% deste tipo de veículos vendidos foram usados, num parque em que apenas 6% dos automóveis são eletrificados.
Falta de elétricos usados
Henrique Sánchez, presidente da Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos (UVE), destaca a aceitação dos elétricos que tem sido evidente também no setor dos usados, no qual a importação é justificada pela diferença de poder de compra entre os portugueses e os cidadãos de outros países. "Onde o poder de compra é mais alto, as pessoas têm tendência a comprar um carro mais recente, com mais autonomia, e lançam no mercado os seus carros anteriores. Isso é positivo para Portugal porque, neste momento, a maior parte dos elétricos usados importados são o Renault ZOE e o Hyundai Kauai, que são de longe os modelos mais vendidos e são muito eficientes. Isso vem permitir a um grande conjunto de pessoas que não conseguiam adquirir um elétrico novo, comprar um usado. Mas há o perigo da invasão dos outros, com motor de combustão interna, e especialmente os mais perigosos, os carros a gasóleo", alerta o presidente da UVE, que aponta, por outro lado, para o risco de Portugal estar a ficar "o caixote do lixo do resto da Europa". A grande problemática, aponta, sempre foi o poder de compra. "Os portugueses não têm dificuldade em comprar um carro elétrico, têm, sim, em comprar um carro. Ponto. Sempre foi isso."
Em sentido paralelo, Roberto Gaspar, salienta a falta de elétricos usados. "Existe aqui um fator que é, novamente, a procura e a oferta. Há poucos elétricos usados disponíveis em stock. Logo, os que existem têm muita procura. São carros que se vendem com alguma facilidade, mas isso tem sempre um nível a partir do qual deixa de ser interessante. Porque o carro elétrico, enquanto usado com alguns anos, perde algumas vantagens do ponto de vista das empresas, como a dedução do IVA", diz, sublinhando um fator de atualidade que se torna mais pronunciado nos elétricos em comparação com os térmicos. "Se formos comprar, hoje, um carro com quatro anos, as diferenças são substanciais. Os novos têm muito mais autonomia e carregamento mais rápido. Comprar um elétrico usado tem sempre esse risco. Sabemos que estamos a comprar algo que perdeu um determinado número de benefícios e do ponto de vista tecnológico, de autonomia, é menos interessante do que um carro novo", afirma.