"Ninguém com o valor do salário mínimo pode viver minimamente bem"

Bruno Bobone defende a aposta na internacionalização das empresas portuguesas e uma melhor distribuição da riqueza no país.

Salários dignos, justiça económica e uma aposta convicta na economia do mar. Eis as três prioridades da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, com 184 anos de história, mais de mil empresas associadas por todo o país e presente em 29 países e que continua a ter como foco principal o crescimento, o desenvolvimento e a internacionalização das empresas portuguesas. Os desafios são mais do que muitos e os obstáculos recentes provocados pela política norte-americana só vêm adensar a complexidade deste trabalho.

Salários dignos. Vamos começar por aí, foi uma das prioridades que definiu. Porque é que em 2018, em Portugal, continuamos a discutir a necessidade de termos salários dignos?

Porque não os temos. Continuamos a ter uma política de discussão, dentro das empresas, dentro das organizações, em que estamos sempre a discutir o mínimo indispensável e o que deveríamos estar a discutir é o que é minimamente aceitável para que uma pessoa tenha uma vida digna.

Isso não depende em grande medida das empresas?

Depende de todos os intervenientes nas empresas. As empresas são compostas por vários intervenientes: os donos das empresas, a gestão das empresas e os trabalhadores. Todos, em conjunto, deviam formar uma equipa que deveria preocupar-se com a maximização da rentabilidade daquela organização e com a distribuição da riqueza que é produzida. Era fundamental debater isso. Não tanto sobre se deveremos ter um determinado salário mínimo, que é sempre um salário sem qualquer dignidade: ninguém com o valor do salário mínimo atual pode viver minimamente bem: não pode cuidar da sua casa, não pode cuidar da sua família, não pode dar qualquer expectativa de desenvolvimento e crescimento e era fundamental que nos preocupássemos em conseguir entregar às pessoas esse mínimo razoável de vida. É fundamental compreender que as empresas foram criadas para melhorar o desenvolvimento económico, para melhorar a forma de criar riqueza e juntar os detentores do capital, das competências de gestão e os trabalhadores para que todos beneficiem dessa riqueza.

De quem é essa responsabilidade? Dos sindicatos?

É sempre de todos. Os sindicatos continuam a manter a sua posição de luta política, muito menos preocupados com a tal defesa de condição de vida dos trabalhadores, mas as associações empresariais e os gestores continuam muito focados em combater essa posição dos sindicatos, que normalmente são os que lideram o debate. E, como o desafio é aumentar o salário mínimo, concentram-se em garantir que não há o aumento do salário mínimo. É um erro de ambas as partes. Fundamental é que se compreenda que a empresa é um local de equipa, em que se tem de juntar todos os interesses, que se criem circunstâncias positivas para fazer dali uma boa organização, aumentar o rendimento. Temos de aumentar a produtividade e agarrar esse aumento de produtividade à distribuição da riqueza.

Deixe-me agarrar precisamente na palavra produtividade. Este é um problema apenas dos trabalhadores ou é do patronato?

De todas as partes, porque todos são responsáveis. É um problema para os trabalhadores, porque, ao lutarem por condições específicas, defendidas pelos sindicatos, acabam por não estar a defender aquilo que seria benéfico para eles. Mantém-se uma cultura de que os empresários e os trabalhadores são praticamente de campos opostos. Para empresários e gestores, o ter trabalhadores motivados é uma mais-valia enorme. Um trabalhador motivado produz mais, está mais disponível, defende melhor a empresa e tudo isso são componentes de um aumento de produtividade e de riqueza. É isso que os empresários têm de conseguir da parte dos trabalhadores. Por outro lado, os trabalhadores têm de compreender que quanto melhor tratarem a empresa mais probabilidade têm de receber em retorno a compensação, que é o salário digno. Mas não é só. É o respeito, são condições de vida completamente diferentes e uma situação de aumento de felicidade, que é o que todas as pessoas procuram na sua vida. É fundamental que se mude este paradigma.

Em Portugal ainda há muitos empresários com vistas curtas a esse nível? Ou seja, com um lado mais ganancioso do que preocupação em redistribuir o resultado dessa produtividade?

Haverá em Portugal o mesmo que existe no mundo. Os empresários, muitas vezes, também estão a reagir a circunstâncias lançadas pelos próprios trabalhadores ou pelos sindicatos e isto é uma mudança cultural que tem de partir de todos. Tem de ser entendido, tem de ser mudado e tem de ser realidade do dia-a-dia. Mas o Estado também terá um papel, que é o de garantir que não vai haver um abuso de apropriação da riqueza criada.

Vamos então falar do Estado e do governo, que está a negociar a concertação social e alterações à legislação laboral. Essas alterações podem contribuir para esse aumento de produtividade?

Não penso que possam contribuir, porque estamos a tentar defender os mínimos indispensáveis dos trabalhadores, por um lado, mas não dando qualquer motivação para que haja um aumento de produtividade. O efeito em termos de empresas é praticamente nulo. Num trabalho feito pela Câmara de Comércio, perguntámos aos associados e empresários quais eram as preocupações principais, quais seriam as maiores dificuldades criadas às empresas para o seu desenvolvimento, e o contrato coletivo de trabalho, a legislação do trabalho não aparece nas três primeiras linhas. Em primeiro lugar vem a justiça económica. A justiça económica é o grande drama para o desenvolvimento das empresas e da economia. Essa é a grande mudança que é necessário fazer, mais do que a legislação do trabalho.

Talvez tenha respondido à próxima pergunta, que era de que forma os partidos e o poder político impedem uma maior competitividade da economia...

Pelas vistas curtas de que me falavam. Em Portugal não há uma estratégia de desenvolvimento para o país. Não há um pensamento profundo sobre a sociedade que queremos criar, nem qual o caminho para chegar a essa sociedade. Era fundamental fazer um debate alargado, nacional, para que todos compreendamos o que queremos como país. Se todos soubermos para onde vamos, é mais fácil haver um consenso entre as partes.

Isso reflete, de algum modo, o que temos visto em termos de gestão do país, com a geringonça. Deixa alguma crítica a este modelo?

Não estava a falar da geringonça. Acho que a geringonça é uma solução que foi encontrada para gerir o país em circunstâncias específicas: não havia uma solução governativa, esta era a única possível. A pessoa que está à frente do governo teve a habilidade de a criar...

Tecnicamente havia outra, que era um governo minoritário...

Menos eficiente, para todos os efeitos, o que não sei se seria melhor ou pior do que esta solução. Neste momento, temos todos de reconhecer que as perspetivas negativas absolutas que estavam no princípio da geringonça não se verificaram mas, também, que estamos num momento perigosíssimo em que, se se começar a descambar, vamos prejudicar tudo o que foi conseguido até agora.

Há pouco referiu que não sabemos qual o nosso destino...

E aí a vista curta dos políticos. Cada vez mais gerem para as próximas eleições, em função das opiniões públicas, daquilo que conseguem ver publicado. Muitas vezes, não são opiniões públicas, são opiniões dos media, das informações que lhes aparecem. E com as redes sociais é mais complicado perceber se é verdadeiramente generalizada ou se é a opinião de um grupo. Isso é o maior erro. Os políticos que não ligam às sondagens e não gerem em função da opinião pública são os mais reconhecidos, que mais ganharam ao longo dos tempos. Mas a tentação para ouvir a opinião pública é enorme e a falta de coragem, muitas vezes, de tomar as decisões que são corretas também é um grande dilema.

Falta coragem a António Costa?

Falta coragem no nosso país. Portugal está marcado pelo medo. Sendo um país marítimo, não temos verdadeiramente uma estrutura de armadores, de empresários do mar, significativa. Fomos habituados a ser protegidos pelo Estado e isso retirou-nos a capacidade de arriscar. Mas também tenho de dizer que esta crise que passámos teve um efeito muito positivo, porque todos nós tivemos de descobrir caminhos novos. E assistimos a um aparecimento de empresários, de todas as idades, com projetos extraordinários - fala-se muito nas startups e a verdade é que a necessidade, porque não há emprego, porque não havia soluções, ajudou muito a criar essa perspetiva de empresariado mais jovem. Na perspetiva da internacionalização, verificamos exatamente o mesmo. As empresas que não puderam viver em Portugal acabaram por se internacionalizar para procurar novos mercados. O Estado não deu qualquer apoio nessa matéria e acabámos por ter empresas muito mais autónomas, muito mais fortes e que resolveram o problema económico de Portugal. Não foi nem a troika, nem o governo, nem a Europa: foram as empresas o grande motor da mudança da economia portuguesa.

Já que fala de internacionalização, vamos agora falar dos Estados Unidos. Donald Trump tem assumido políticas que podem ter consequências para a economia mundial. Como é que as empresas portuguesas devem preparar-se para o que aí vem?

As empresas portuguesas têm uma resiliência muito grande às dificuldades. Primeiro, porque vêm de um mercado muito pequeno. São empresas que só venceram porque têm, realmente, produtos muito acima da média e com qualidade extraordinária. Eu diria “não tenham medo”. O senhor Donald Trump está a fazer uma política que é importante para os EUA, que têm uma balança de pagamentos desequilibrada e está a tentar resolver isso. Estou convencido de que não é este caminho que lhe vai dar a solução, mas para as empresas portuguesas só basta trabalhar, continuar a insistir e estamos capazes de continuar o nosso caminho.

No imediato não antevê algumas consequências?

Reclamar em Bruxelas que a Europa tenha contrapartidas de legislação, que garanta que os EUA têm dor nas decisões que tomaram, para que possam reverter as que são mais importantes para nós.

Não antevê que venha daí “grande mal ao mundo” para as empresas portuguesas, sobretudo as exportadoras, em relação às decisões de Trump?

Há um risco. Acho que vão descobrir outros mercados para substituir e acho que têm de fazer uma força muito grande junto do governo, da Comissão, para que ela possa, de facto, intervir a nosso favor. A Europa foi muito útil para nós, em termos de financiamento, mas nunca nos defendeu em termos estratégicos nos nossos interesses. E temos de conseguir fazer essa mudança e aí temos de trabalhar. Mas não vale a pena estarmos com ilusões. Ou dependemos de nós ou não vai acontecer. Portanto, não tenham medo, vamos à luta, vamos juntos, vamos tentar organizar-nos e fazer um bom resultado nessa matéria.

O Presidente da República reúne-se na próxima semana com o presidente americano e esse será um tema a estar em cima da mesa. O que seria um ganho de causa para Portugal?

Que os produtos portugueses não estivessem dentro dos que vão ser penalizados nas importações dos Estados Unidos. Tenho dúvidas, acho que não é muito provável. O senhor Donald Trump é imprevisível. É um grande negociador, aliás, como o nosso primeiro-ministro, e pode sair dali alguma coisa que não estamos à espera.

Uma das prioridades que elencou no aniversário da CCIP foi a economia do mar e falou da prospeção de petróleo em Aljezur. Sempre que se toca neste tema surgem, obviamente, receios das populações e uma contestação muito grande por parte das organizações ambientalistas. Consegue compreender esses receios ou são infundados?

Não posso deixar de compreender os receios, porque já estava à espera de que houvesse receios. Temos um território marítimo com 1,7 milhões de km2, estamos a candidatar-nos a ter uma gestão de um território na ordem dos 3,8 milhões de km2. Dá-nos um território superior à Índia e o mar é aquilo que pode fazer a diferença e transformar-nos de um pequeno país num enorme país. Temos uma potencial riqueza neste mar, com um produto que hoje sabemos que tem características também negativas, mas não podemos sistematicamente abdicar das nossas riquezas para defender princípios morais válidos sem que os outros à nossa volta façam o mesmo. Acabamos sempre por ser prejudicados, não conseguimos investir na mudança e acabamos, sempre, por ser o último da fila. Neste momento, ainda estamos a fazer uma prospeção para saber o que lá há, mas, se houver, devemos explorar o que há. E condicionar o seu uso para que seja aplicado na mudança energética, para fazer uma transformação da utilização energética para energia limpa. Mas um investimento enorme neste mar que temos pode, de facto, fazer a diferença na qualidade de vida dos portugueses. Se há riqueza vamos olhar para ela, explorá-la da melhor maneira possível, condicionar a sua utilização, mas não vamos perdê-la. Quando foi a questão da energia atómica, decidimos não ter porque achávamos perigoso. Tínhamos moralmente toda a razão, mas construíram-nos uma central nuclear ao lado. O risco tivemo-lo na mesma e o preço da energia baixou para os espanhóis. Não vamos repetir isto, não ter rendimento, não ter riqueza é aquilo que Portugal não pode continuar a permitir e é o que nos dá má qualidade de vida.

Estamos a aproximarmo-nos da discussão do último Orçamento do Estado da legislatura. O que gostaria de ver no Orçamento?

Acho que o Orçamento tem de ter contenção, de ser focado em recuperar as finanças do país, mas acho que tem de ser muito virado para o apoio à internacionalização da economia. Portugal tem um mercado relativamente pequeno e a economia do mar ainda não vai ser nada de mais significativo. E, portanto, temos de pensar que só vamos viver bem se usarmos o mercado mundial como a nossa fonte de receita. E aí o Estado português tem de fazer um esforço muito maior, tem de dedicar mais tempo a apoiar as empresas portuguesas e a compreender como se pode apoiar as nossas empresas lá fora.

Este governo surpreendeu-o, de alguma maneira? Pela positiva ou pela negativa?

Não me surpreendeu, acho que tem grandes competências em determinadas matérias e tem uma ideologia muito marcada. Duas condições que estavam presentes desde o primeiro dia. A postura face a Bruxelas teve uma evolução positiva, porque a cedência constante não era uma mais-valia. Houve uma maior distribuição às pessoas e isso também é importante. Mas foi também uma forma de passar a mensagem e houve uma habilidade grande do governo: de fazer acreditar as pessoas de que estamos melhor. Foi motivador para que houvesse desenvolvimento económico.

Qual seria o quadro político ideal, na sua opinião, para a economia portuguesa pós-2019?

Um quadro de um governo e de um Presidente que se entendessem e que pusessem em primeiro lugar a discussão estratégica do futuro do país. O Estado continua muito pesado. Tem de haver uma reforma do Estado, uma melhoria da gestão dos dinheiros públicos, mais seriedade em muitas das áreas públicas. Mas tem de haver uma vontade de levar o país. Nós somos dez milhões e, se Portugal tiver dez milhões com um objetivo comum, garanto-lhe que vamos lá chegar. Isso era aquilo que os partidos e os portugueses deveriam fazer.

Preferia que não existisse uma nova geringonça depois de 2019?

Não me importa qual é o governo, importa-me o resultado desse governo. A política deve ser feita, em primeiro lugar, pela votação dos portugueses e que escolham aquilo que querem e que depois deve ser exigido pela sociedade civil aos governos. E, se a sociedade civil for forte e for capaz de exigir, os governos podem ser o que forem porque vão fazer o que nós queremos.

Uma última pergunta. Porque pedem os vossos empresários um novo mandato a Marcelo e, já agora, o que esperam de um segundo mandato?

Uma das questões que foram menos positivas, da parte deste governo, foi a falta de estabilidade de medidas que estavam a ser tomadas em determinada linha de promoção e desenvolvimento do crescimento económico. Por exemplo, a questão fiscal. Manter o Presidente da República vai dar-nos uma mensagem de estabilidade, de desenvolvimento, de progresso, até para atrair novos investimentos. O Presidente Marcelo tem feito um grande trabalho, tem sido um grande representante de Portugal. O seu grande mérito foi o de unir os portugueses em torno de uma representação que ele conseguiu fazer e muito bem.

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