Nuno Villa-Lobos "Há 17 mil milhões parados nos tribunais. Acelerá-los seria ter uma bazuca interna"

Presidente do CAAD diz que dinheiro congelado em processos "faz falta à economia" e defende a reforma da justiça. Lamenta que não se fale do muito que mudou para melhor. Mas admite que, se caso Sócrates acabar prescrito, "será um terramoto", que resultará em "trancas securitárias".

Nuno Villa-Lobos licenciou-se em Direito na Universidade Clássica de Lisboa e tem um mestrado em Ciência Política pelo ISCTE. Fez toda a carreira no âmbito do Ministério da Justiça, tendo passado pela Direção-Geral da Administração Extrajudicial, em projetos de implementação dos primeiros julgados de paz. É desde 2009 presidente do Centro de Arbitragem Administrativa, o CAAD, e tem uma visão da justiça mais simples, transparente e acessível.

É um defensor da reforma da justiça e de mais investimento na área administrativa. Que caminho está feito e o que está por fazer para desbloquear processos e até combater populismos?
Quanto à reforma da justiça, no outro dia fiz o seguinte exercício: fui ao motor de busca do Google e coloquei a frase "crise da justiça". Encontrei 750 mil registos e para "reforma da justiça", o número não sendo tão elevado, também o é, estamos a falar de cerca de 500 mil. E depois uma terceira palavra, que tem sido a solução que vem sendo defendida, sem qualquer sucesso nos últimos 30 anos, onde aliás o discurso da justiça tem estado cristalizado. São os pactos de regime para a justiça. Mas como afirmou o António Barreto, um grande especialista nesta área, e afirmou no DN, os únicos pactos de regime que se fizeram em Portugal foram as revisões constitucionais.
Se eu sou defensor de uma reforma para a justiça? Eu sou um otimista, por natureza. E noto que há aqui uma divergência entre aquilo que é o plano do discurso público, da perceção pública e depois os indicadores factuais, a estatística. O problema deste confronto na área da justiça não é específico da área da justiça, também acontece noutras áreas. E sempre que há uma dissonância entre, por um lado, aquilo que é o discurso e a perceção, aquilo que é o sentir geral da comunidade, e depois os dados reais, há um dilema democrático. Porque os governos têm de ser responsivos, têm de estar atentos àquilo que são as preocupações das pessoas e é preciso ver quando essas preocupações não são tão reais quanto parecem ser em termos de perceção.
Mas sim, é preciso reformar algumas áreas da justiça, mas não todas. O cível está francamente melhor, evoluiu consideravelmente entre 2010 e 2020, mas depois há outras áreas que estiveram esquecidas durante demasiados anos, e essa é a mesma área que acho que me traz aqui, que é a área da justiça fiscal.

Mas não defende um pacto de regime. Porquê?
Não sou um entusiasta de um pacto de regime, na medida em que o interesse na justiça e o interesse da justiça podem não ser coincidentes. Ou seja, o somatório de todas as corporações da justiça, das suas pretensões, um mínimo denominador comum, que seja um consenso alargado, não o transforma numa decisão de política pública mais adequada. Podem não ser coincidentes. Ou seja, a maioria das pessoas pedir uma coisa, não significa que essa coisa esteja certa. Não, chegam a um consenso mínimo que pode, em bom rigor, não defender o interesse público da justiça, porque pode não ser coincidente, porque há medidas que têm de ser impopulares. E um pacto de regime à partida o que faz é reduzir, é desbastar as divergências e procura um denominador comum. E o que me preocupa é o interesse da justiça e não os interesses na justiça.

Doze anos de arbitragem tributária e a situação da justiça fiscal continua à beira do colapso. Afinal, a arbitragem e o CAAD, em concreto, não resolveram o problema?
De colapso felizmente fugimos e fugimos a tempo, estamos a meio da ponte. Felizmente fugimos. Se for olhar para os números da lentidão do sistema e os números, atenção, estou a falar de números que são verdadeiros, mal seria, foram divulgados por entidades oficiais, apontam para uma subida do tempo médio de decisão nos tribunais fiscais de primeira instância, entre 2018 e 2021, dos 58 meses para os 75 meses, portanto, seis anos e três meses.
E estes números, esta realidade, têm servido de fundamento para um discurso catastrofista sobre a situação da justiça fiscal. Só que há aqui uma questão: é que estes dados, sendo verdadeiros, dão azo a interpretações muito erradas porque assentam numa média aritmética e não na mediana.
E o que é que quero dizer com isto? Estes dados são explicados por uma medida conjuntural que foi aplicada a partir de 2019, que foram equipas de recuperação de pendências de processos mais antigos, entrados até final de 2012, e à medida que essas decisões vão entrando no sistema, em que os processos vão terminando, inflacionam artificialmente a situação real nos tribunais fiscais que, felizmente, e tenho pena que isto não seja dito mais vezes, está numa trajetória francamente favorável de recuperação desde 2015.
Estamos a falar de uma redução de pendência de 25%, ou seja, se nos referirmos àqueles processos que são os únicos em que o CAAD tem intervenção, que são os processos de impugnação, que são aqueles mais complexos, que demoram mais tempo, que impactam mais tempo nos tribunais do Estado, aquilo que verificamos é que houve uma redução de 22 mil processos para 15 mil de impugnação.
Portanto, estamos numa trajetória vigorosa, podemos ir mais depressa, podem ser tomadas medidas para se ir mais depressa, mas estamos sem dúvida no caminho certo e acho que nos estamos a aproximar do meio da ponte, do meio do caminho, do meio da montanha, há uma luz que brilha mais forte e eu, por isso, não embarco num discurso pessimista, sobretudo pelos factos que desmentem esse discurso.

E quanto tempo é que vamos demorar a chegar ao outro lado da ponte?
Depende da intensidade da trajetória que quisermos incutir. Neste momento, estão a ser anunciadas medidas adicionais, desde a criação de mais um tribunal Central Administrativo, uma instância de recursos, na Zona Centro. Foi finalmente aprovada a lei orgânica do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, mas acho que se podia ir mais longe no reforço dos juízes, do número de juízes. Porque o rácio do número de juízes por 100 mil habitantes nos tribunais comuns, creio que anda à volta dos 19 ou 20, mas nos tribunais tributários o rácio é 1 por 100 mil habitantes. Por isso, acho que foi bastante importante para esta trajetória de recuperação iniciada em 2015 uma medida que foi a criação de mais juízes, o alargamento do corpo de juízes que aconteceu em 2016, um alargamento creio que de 26% ou 27% do número de juízes, que era uma necessidade de há 20 anos e por isso acho que podia ser reforçada.
E sobre isso queria dizer uma coisa, que é ilustrativa de como nós aqui chegamos e é uma coisa que acho que nunca foi dita por ninguém. Sabem qual foi a atitude que o poder político tomou entre 1998 e 2006 para resolver as pendências que se começavam a acumular na justiça fiscal? Posso dizer-vos o que não foi. Não se fez uma reforma da justiça fiscal, posso dizer também que não se alargou o número de juízes, posso dizer também que não se alargaram os meios. O que é que se fez então? O que se fez na altura foi liberalizar, na prática, as prescrições das dívidas fiscais.
Se o processo estivesse parado um ano, o processo podia fazer a sua contagem, deixava de estar interrompido o prazo e fazia a sua caminhada até à prescrição final, até à morte na secretaria.
Era muito importante fazermos a avaliação de quantos milhões é que se perderam nesses oito anos de inércia.

E não estão feitas essas contas?
Temos de começar na moeda antiga, fazemos a transição para o euro. Era muito interessante, mas faço o apelo a que façam esse trabalho de investigação. E a situação só mudou pela pressão pública, na altura realizado pelo sr. presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Sr. Juiz Conselheiro Manuel Fernando dos Santos Serra, que aliás é Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, e que disse que essa situação era inadmissível. A quantidade de processos que chegavam ao Supremo Tribunal Administrativo morriam e a única coisa que se fazia era declarar a prescrição. Essa foi a atitude do poder político. Como é que nós vamos resolver a pendência? Vamos reformar o sistema? Não, não vamos reformar o sistema, vamos matar o problema à nascença. E por isso é que nós chegamos a esta situação dos 17 mil milhões parados nos tribunais fiscais.

Ainda assim, há críticas da SEDES, por exemplo, que propõe o fim da autonomia da jurisdição administrativa e fiscal com a criação de uma ordem única de tribunais, com um único Supremo Tribunal e um único Conselho Superior de Magistratura Judicial. Ou até o que tem dito a Associação Business Roundtable Portugal, que pretendia aumentar o limite da jurisdição do CAAD dos atuais 10 milhões para 150. Estes factos assentam em premissas erradas, isto é, seriam caminhos errados?
Quanto à SEDES, é uma ideia que já estava morta, a ideia da unificação. Já estava morta porque não há um único argumento que vá nesse sentido. É uma ideia do passado que por vezes aparece, até apareceu nos acordos para a Justiça de 2018, assombrado entre vários agentes do sistema de justiça, designadamente pela ordem dos advogados e pelas magistraturas. Enfim, uma proposta muito surpreendente, porque não há um único argumento que encontre que vá nesse sentido. Mas dizia eu, não vale a pena perdermos muito tempo com essa proposta porque já estava morta e agora foi passada a certidão de óbito com a criação da lei orgânica do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Ou seja, essa ideia esteve moribunda durante 20 anos, enquanto se esperava que o governo desse execução ao que estava previsto na lei e, neste momento, está morta e está declarada a morte.
Quanto à Business Roundtable, assenta na tal premissa errada de uma leitura enviesada do crescimento dos tempos médios de decisão dos processos, com base na tal média aritmética que se recorresse a uma mediana verificaria que os processos a situação não tem estado a piorar, pelo contrário, como já disse no início. Mas, deixe-me que lhe diga, é claro que reconheço que há um impacto muito grande em ter tanto dinheiro, um montante tão elevado, por discutir nos tribunais tributários. E sabe desde quando é que se fala disto, do dinheiro que está parado nos tribunais tributários? Só se fala desde 2011 com a troika.
A Business Roundtable, tal como a troika, no documento a que tive acesso, incorre num erro de análise, que é o mesmo: é o de olhar para o nosso sistema como se o Estado tivesse, em termos orçamentais, algo a ganhar com a aceleração súbita desse montante dos 17 mil milhões. Ora, de acordo com o nosso sistema administrativo de tipo francês, aquilo que são as regras e são uma exigência existencial do nosso próprio sistema fiscal é o contribuinte paga primeiro e reclama depois. Ou seja, todo este dinheiro que está em disputa, o imposto já está do lado do Estado. O drama aqui é se, por acaso, o Estado perde. É que se o Estado perde, tem de devolver o imposto que foi pago, acrescido de uma taxa de juro ano de 4%. E este juro vai crescendo exponencialmente de ano para ano.
Fiz aqui uma pequena conta que também acho que vos irá surpreender. Vamos imaginar que do montante atual que está parado nos tribunais, os 17 mil milhões, fala-se muitas vezes que são 10 milhões, mas não são. Os 10 mil milhões referem-se apenas aos processos de valor superior a um milhão de euros. Esse levantamento foi feito pelo presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, acho que quando chegou a troika, e então nesse levantamento verificou-se que esses processos representavam 2.7% do número total de processos. Só que em valor eram representativos de 70% do valor envolvido. Ora, se imaginarmos que deste montante que está em disputa o Estado ganha 50%, vamos agora ver as consequências em relação aos 50% que perderam. Pela conta que aqui tenho, a fatura final seria de 12 mil milhões e meio de dívida, porque eram 8 mil milhões e meio do imposto que tinha a pagar, mais 4 mil milhões de juros.
Ou seja, os juros representariam 48% da dívida. Está encontrado, porventura, um motivo para ao longo destes 20 anos nunca ter havido investimento a sério na reforma do nosso sistema fiscal. E será que estou a dizer que esse é o caminho certo? Não. Essa é a visão, se quiserem, de curto prazo, minimalista, pouco ambiciosa.

O que faz falta?
Acho que faz falta aqui um golpe de asa orçamental, porque não nos podemos esquecer que isto é dinheiro que faz falta à economia. Isto é um dinheiro sem endividamento. Ou seja, se estes processos fossem acelerados, tínhamos uma bazuca interna nos tribunais fiscais sem endividamento.
É dinheiro que faz falta às empresas, à criação de emprego, à nossa competitividade. É fundamental dizer isto. E fica aqui o apelo - não percam a oportunidade de reformar a justiça fiscal e acelerar este montante em dívida. Não só por uma questão de justiça, e acima de tudo há aqui uma questão de justiça e o dinheiro dos contribuintes não pode ficar parado nos tribunais refém de um atraso da justiça, mas também está aqui o interesse nacional de investimento e de injetar este dinheiro parado na nossa economia e na criação de emprego.

As constantes alterações via Orçamento do Estado tornam o sistema ainda mais complexo?
Creio que esse problema já foi maior, são os denominados cavaleiros orçamentais. Mas há, de facto, imensas alterações nos códigos tributários. Há um trabalho muito profundo que foi feito pelo Joaquim Miranda Sarmento, que visava analisar o conjunto de alterações legislativas aos códigos tributários entre 1989 e 2014 para fazer, portanto, uma avaliação sobre a estabilidade do nosso sistema fiscal e chegou à conclusão que durante este período houve 492 alterações legislativas a que corresponderam 3178 artigos alterados nos códigos fiscais. Sabem quem é que beneficia com isto? São apenas as editoras jurídicas que lançam novas publicações todos os anos, mais ninguém beneficia com isto.
E sem dar assistência às empresas, sendo-lhes impossível manterem-se a par de todas estas alterações. Que é aquilo de que o que o professor Saldanha Sanches falava como paradoxo da justiça fiscal, em que, por um lado, o que se quer é integrar os cidadãos no processo de decisão, mas depois são tão grandes as tecnicidades que afastam e que nessa medida criam um fosso no seu conhecimento e isso é uma falha da democracia que tem de ser corrigida. E neste momento há uma aposta grande, nos últimos anos, na cidadania fiscal e acho que esse é o caminho para criar uma nova geração diferente da nossa.
O que é que pode ser feito para acelerar a execução desse número de processos?
É uma questão de ritmo, como lhe disse. Acho que podíamos pensar em reforçar os juízes, se falarmos apenas nos processos de valor mais elevado, acho que podia ser aqui proposta uma medida que também ainda não vi ser defendida, mas acho que o poder político, político ou legislativo, poderia ponderar. Isto é, do mesmo modo que foram criadas equipas, na altura da Troika, as equipas especiais de juízes dos tribunais de Estado para tramitar os processos que tivessem um valor superior a um milhão de euros, para maioria de razão, também podiam ser criadas equipas especiais de juízes nos tribunais de Estado para acelerar os processos acima de 10 milhões. E é um pouco a proposta da Associação Business Roundtable Portugal (BRP), mas não no CAAD - e já respondo por que não no CAAD -, mas nos tribunais do Estado. Esta proposta teria de ter uma condição, que é que a aceleração destes processos não se fizesse à custa do atraso dos contribuintes comuns. E, por isso, teria de haver um reforço suplementar de juízes para acelerar estes processos.

Por que não no CAAD?
É essa a pergunta. Quando recebi essa proposta, pedi imediatamente que se fizesse um levantamento do número de processos pendentes, ou melhor, do número de processos entrados nos tribunais do Estado com maior peso, ou seja, Lisboa e Porto. E cheguei a uma conclusão que vos pode surpreender ou não. É que no Porto, acima de 10 milhões, em 2022, entrou um processo. E em Lisboa, entraram 12 acima de 10 milhões. Ora, eu até posso ser acusado de ter falta de ambição, mas falta de noção é que não tenho. E aquilo que queria aqui deixar bastante claro é que o CAAD tem de ter noção de qual é o seu papel.

Qual é o papel do CAAD?
Vou começar por dizer-lhe aquilo que não é o papel do CAAD. O CAAD não é um pilar alternativo do sistema de justiça fiscal. O CAAD o que é, é um reforço do sistema de justiça fiscal. Procura ser, torná-lo mais efetivo, fazer com que respire melhor, que tenha menos volume. E é isso que tem sido feito. Esta recuperação do sistema desde 2015 assenta num círculo virtuoso de causas. O reforço dos juízes em 27%, as equipas de recuperação de processos antigos, anteriores a 2012, e também a intervenção da Arbitragem Fiscal. Porque durante este período, em que há menos 7 mil impugnações nos tribunais de Estado, houve 6500 processos no CAAD.

Foi quase uma transferência direta.
Em termos simplistas, pode não ser sempre assim, porque há um fenómeno técnico que se denomina de litigância suprimida. São aqueles processos que não entrariam nos tribunais de Estado, mas em termos simplistas, cada novo processo no CAAD é menos um processo nos tribunais de Estado.

Mas o que é que justifica alguma crítica que tem havido ao CAAD, inclusivamente pelo presidente do Sindicato de Juízes, que tem sido bastante crítico em relação à arbitragem e mesmo a nova bastonária dos advogados tem tido uma posição que não é a mais amigável?
Tenho sempre muita dificuldade em pessoalizar, porque para mim, muito mais importante do que os argumentos da autoridade, é a autoridade dos argumentos. E estou sempre muito atento a cada argumento, venha ele de onde vier. Vou-lhe dar um exemplo. Uma das críticas que faziam à Arbitragem Fiscal nos primeiros anos era que havia uma grande divergência entre os tribunais arbitrais tributários na aplicação do direito relativamente a questões que eram análogas. Isso criava uma insegurança jurídica, mas isso tem um lado bom. O lado bom é que significa que a independência do julgador é total, que não decide porque o juiz, o julgador, o árbitro ao lado fez de uma determinada maneira.
Mas tem um problema de facto, cria insegurança. Então nós fomos os primeiros a interiorizar esta crítica e a apresentar uma proposta, que ao mesmo tempo sinalizasse que o órgão máximo da justiça, mesmo que a arbitragem intervenha nesta matéria, é sempre o Supremo Tribunal Administrativo. E por isso propusemos que nestes casos em que há decisões divergentes quanto à mesma questão fundamental do direito, fosse possível pedir essa orientação ao Supremo, pedir um acórdão uniformizador de jurisprudência. E esta medida teve um efeito, um impacto sistémico, não só para o CAAD, mas para todos os tribunais tributários de primeira instância que ficam a conhecer de antemão qual é a posição a seguir definida pelo Supremo. E isto é uma medida que também cria simultaneamente um impacto ao nível da redução de litigância, porque os contribuintes e a Autoridade Tributária, na hora de liquidar, já sabem qual é a orientação do Supremo Tribunal Administrativo.
Como vê, absorvemos as críticas. Quanto ao discurso generalista que por vezes vejo ou leio sobre a arbitragem, acho que beneficia o infrator, porque é um discurso sempre simplista, simplificador, enganador, em que toma sempre a floresta pela árvore. Pega-se, portanto, numa árvore envenenada, que é a arbitragem ad hoc, e eu próprio já o disse, que é no fundo a arbitragem que resolve os litígios de maior volume financeiro em Portugal e que, simultaneamente, é aquela onde há menos compliance, regime de prevenção de conflito de interesses, e confundem-na com toda a arbitragem.

E para os nossos ouvintes e para essa diferença ficar clara, qual é a diferença entre as arbitragens ad hoc e as administrativas?
As arbitragens ad hoc podiam estar a decorrer nesta altura, neste estúdio da TSF, com a diferença de que as câmaras não estariam ligadas, nem os microfones, ninguém saberia o que se estava aqui a passar. Esta audiência não seria pública, haveria um dia uma decisão que ninguém conheceria, só os próprios.

E seria um privilégio de grandes empresas, por exemplo?
Estando nós a falar de um meio de resolução de litígios preferencial, se não único, no âmbito das parcerias público-privadas, o que é que lhe parece? Se for à conta geral do Estado, e mesmo aí é difícil encontrar registos sobre estas arbitragens, é preciso fazer contas de somar muito rebuscadas. Estamos a falar de 850 milhões por ano de arbitragens que ninguém conhece. Mas se é grave que eu, a Joana e a Ana não conheçamos essas arbitragens, mais grave ainda é que o Tribunal de Contas também não as conheça. Já todos ouvimos falar da arbitragem do TGV. E o que aconteceu? E qual é que foi a posição do Tribunal de Contas que proibiu o Estado, e muito bem, de dar execução àquela decisão arbitral? Por isso, o que se quer é transparência.
Nós no CAAD temos audiências públicas, algumas até já foram presenciadas por senhores jornalistas. Os processos são públicos, as decisões são publicadas em várias plataformas, ainda mesmo antes de estarem transitadas em julgado, o sorteio dos árbitros é público, presidido pelo nosso Presidente do Conselho Deontológico, anterior Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, há um regime apertadíssimo de prevenção de conflitos de interesses, portanto, de compliance. Dou-vos um exemplo prático. Muitas vezes diz-se que os árbitros são advogados e que há aí uma promiscuidade. Há uma regra que está prevista no regime da arbitragem fiscal e que, no nosso entendimento, até se aplica a outras arbitragens que não só a arbitragem fiscal, que diz que se houver um processo em que a ação tenha sido apresentada por um qualquer advogado de um escritório de advogados, ninguém desse escritório de advogados pode ser árbitro. Não é desse processo, obviamente, que não poderia, mas qualquer outro. Por isso é que da nossa lista de árbitros muito alargada, o número de árbitros elegíveis, porque cumprem todas as regras que são verificadas, é manifestamente reduzido.

Mas então é esse desconhecimento que explica as críticas, por exemplo, do PCP e do Bloco de Esquerda, dizendo que a arbitragem é uma "perversidade" e que tem sido "invariavelmente prejudicial para o interesse público"?
Os números demonstram o contrário. A perversidade, se quer usar essa palavra, é o argumento de que as decisões são boas ou más em função de quem ganha. Isso é o discurso primário, primitivo, de futebolização da justiça, de um maniqueísmo absoluto, que diz mais ou menos isto: se uma decisão que envolve um pequeno contribuinte for favorável ao Estado, o Estado é o opressor, mas se essa decisão beneficiar uma grande empresa, é porque o Estado e todos nós, contribuintes, fomos enganados. Isso é perverso. Porque isso tem um nome, chama-se desonestidade intelectual e obedece a uma teoria. Há essa premissa, efetivamente, só que depois, neste caso em concreto, nem era necessário que isso acontecesse. Mas no caso em concreto de arbitragem fiscal, essa teoria encontra um pequenino obstáculo que são os factos.
Vou dar-lhe os exemplos mais recentes que vão ser anunciados no próximo mês, no relatório referente a 2022 da atividade do CAAD da arbitragem fiscal, e que, aliás, estão em linha com a generalidade dos anos. O Estado perde mais nos litígios de valor mais reduzido. Ou, dizendo ao contrário, os contribuintes ganham mais nos litígios de valor mais reduzido. Estamos a falar aqui de litígios de até 5 mil euros, em que os contribuintes obtêm um vencimento de 76% em valor envolvido e em número de decisões de 72%. Depois, progressivamente, à medida que o valor cresce, o Estado ganha mais processos e o contribuinte ganha menos. E quando passamos o limiar de um milhão de euros, o que é que verificamos? Que o Estado ganha em número de decisões, com 54%, e em termos de valor económico envolvido, há um equilíbrio quase total, 51%-49%. Por isso, essa teoria, como teoria fraca, na aplicação aos factos, também a consistência deixa muito a desejar.

Há seis meses, apontava o emprego público como prioridade do novo ano judicial. Esse caminho está a ser feito? Qual é o ponto da situação que faz do momento atual?
A arbitragem no emprego público foi o arranque do CAAD. O CAAD foi, aliás, impulsionado pelos sindicatos na área da Justiça e há, a meu ver, aí uma proposta incontornável que já apresentei à Sra. ministra da Justiça, que é de permitir que a carreira de investigação criminal da polícia judiciária possa, como já tem vindo insistentemente a ser solicitado pela nova presidente da ASFIC, que esses litígios possam ser resolvidos no CAAD. O nosso regime de custas no CAAD é manifestamente inferior no caso da arbitragem da função pública aos próprios terminais de Estado e há questões ali que se estão a arrastar há cerca de 15 anos, questões que têm a ver com a vida dos nossos investigadores criminais, questões bastante relevantes, questões de suplementos, questões de abonos. E por uma questão de opção política em 2009, essas carreiras ficaram excluídas da vinculação do Ministério da Justiça. Acho que essa deve ser a prioridade. Simultaneamente, também tive a oportunidade de transmitir isso à sra. ministra, que mostrou muita abertura, acho que devíamos esquecer esta prioridade, pelo menos teórica e dos manuais, à arbitragem da contratação pública e olhar mais para o lado, para a arbitragem no emprego público.
Aí sim, a arbitragem pode fazer a diferença e o argumento é o mesmo que utilizo na arbitragem fiscal. Se formos ver onde há mais processos pendentes nos tribunais administrativos, não é na contratação pública, é no emprego público. Por isso, o que temos de fazer é modificar essa legislação. Estava há pouco a falar do Bloco de Esquerda. Pois bem, o BE é favorável à arbitragem na função pública. Então não foi isso que aconteceu na legalização dos avençados [da CML] em 2007? E não foi proposta uma solução idêntica em Almada? Ou estarei enganado? Por isso, provavelmente, até são defensoras da arbitragem no direito público e não sabem

Nesta altura, até pela revolução digital e tecnológica, considera que há pouco conhecimento especializado nos tribunais ou falta legislação?
Acho que essa é uma matéria que o PRR, se vier a ser bem aplicado como todos, enquanto cidadãos, esperamos, pode vir a fazer a diferença, pode haver aí um boost de modernização, porque é indiscutível que é preciso haver alterações. Não só em termos informáticos, mas também no edificado. Soube que ontem a Sra. presidente do Supremo Tribunal Administrativo esteve no tribunal de Braga, que é um administrativo fiscal que não tem condições mínimas. Há poucas semanas esteve em Leiria, onde se passou o mesmo. Os estudos apontam para o seguinte: neste momento, ao longo dos anos, se quiser, dos últimos 30 anos, a justiça tem sido monotemática, só se fala da lentidão. E com isso perdemos outros aspetos da realidade e um deles é a questão da cidadania.

E o que se inclui na cidadania são as condições do edificado, as condições dos tribunais. É importante que se alargue aqui um pouco o âmbito dos temas para que não estejamos todos de forma cristalizada. Quando vamos a um museu e vemos uma obra de arte, a obra de arte, quando saímos do museu, modificou-nos, mas ela continua igual. Aqui o que se passa é o contrário, parece que estamos a ver uma obra de arte específica. Estamos todos a ver, se quiser, o retrato de Dorian Gray, estamos todos a olhar para lá há 30 anos, só que não percebemos os sinais de alteração que houve ao longo destes 30 anos. Será que ainda ninguém percebeu que houve uma redução de litigância no cível? Cerca de 500 mil processos para 250 mil. Ninguém sabe que um processo de inquérito penal demora, em média, nove meses, que um julgamento penal demora, em média, nove meses? Ninguém fala do que corre bem?

Porque o que corre mal, por vezes, e nos tempos também, é demasiado grave para ofuscar essas modificações e essas vitórias. Por exemplo, casos como o processo da Operação Marquês, que se arrasta há uma década e corre o risco de morrer na praia, de grande parte dele prescrever. Que efeito é que isto poderia ter na opinião pública sobre a justiça?
Reconheço que é pouco provável que um caso com uma recuperação possível abrisse um telejornal. A questão dos casos mediáticos e estamos a falar de um caso que estará no top três em democracia dos casos com maior projeção, se calhar só comparável a um julgamento das FP25 ou a um processo Casa Pia. É um caso limite. É um caso limite que se fizermos uma análise estritamente sociológica, se de facto se confirmar aquilo que os seus colegas jornalistas têm vindo a dizer, e os especialistas, a confirmar-se a crónica de uma morte anunciada na praia, será um terremoto. Será o Ground Zero.
E o problema é que a seguir ao Ground Zero, normalmente vêm as trancas à porta. Trancas securitárias. E por isso, este caso poderá - e não vou comentar o caso em concreto -, mas numa perspetiva sociológica, um processo morrer por prescrição nunca é bom, é sempre uma patologia, sempre um desvio ao sistema, mas mais ainda um caso como este. Creio que para os envolvidos, em tese, não para este caso em concreto, ser absolvido por prescrição também não me parece que seja uma resposta muito satisfatória.

Se o caso que envolve o antigo primeiro-ministro José Sócrates de facto prescrever, acha que a seguir a Justiça vai começar a julgar loucamente toda a gente a grande velocidade e sem ter grande atenção às regras?
Não, isso não vai acontecer porque a nossa Justiça e os nossos juízes aplicam de forma rigorosa a lei. Só que aplicam a lei, mas não se eles criam a lei, o que pode acontecer é um movimento securitário de alteração das leis. Ou seja, de penas mais elevadas, encurtar fases, enfim, o que seja.

Porque estará em causa o sistema de Justiça e o próprio Estado Democrático, não?
Na medida em que há uma crise de confiança numa instituição fundamental da nossa democracia, se bem que não vamos aqui dramatizar, porque essa crise existe em relação a todas as instituições. Isto faz parte, se quiser, de um sentimento antipartidos, antidemocracia, que se está a generalizar por todas as democracias até mais consolidadas. Há um sentimento também de desconfiança em relação à comunicação social, em relação aos partidos políticos, em relação às instituições em geral do nosso Estado. Há essa descrença. E, na medida em que há essa descrença, o que pode acontecer é que a justiça se vai fragilizar. E, se a justiça se fragiliza, há uma consequência. Só que quem é que ganha com a fragilização da justiça? Quando ouço um discurso autofágico por alguns protagonistas da justiça, o que penso é, mas o que é que serve esta fragilização da justiça? Será que não entendem?

E a quem é que serve?
Serve ao Eldorado do crime, de colarinho branco e não só. São os únicos que têm a ganhar com a fragilização da justiça. Por isso, não é apontar ou deixar de apontar o que corre mal. E, de facto, o nosso sistema penal, dizem os especialistas, tem de ser repensado. Estava no outro dia a ouvir um podcast do Luís Rosa, com um grande senhor e um grande especialista do direito penal, o Dr. José António Barreiros, que dizia isso mesmo, que havia um discurso demasiado extremado, radicalizado, tribalizado, em que cada representante ou corporação tinha um entendimento radicalmente oposto aos outros, que há um pingue-pongue constante entre os vários agentes, que cada dia nos aparece no telejornal alguém a atribuir as culpas a outra corporação e que isto tem que ser repensado com alguma frieza e distanciamento.

Mas, voltando à questão, não vai haver frieza nem distanciamento se um caso como este acabar em prescrição. Mas há casos que correm bem, há instruções que são rápidas. Por exemplo, a instrução Face Oculta foi rápida, há instruções que correm bem - a instrução do caso Manuel Pinho foi exemplar. E a fase de instrução, numa fase inicial, nunca foi equacionada para ser um pré-julgamento. Depois, se quiser, houve uma adulteração ao longo do tempo. Temos de olhar para isto tudo com distanciamento. Nós, quando estamos muito em cima de uma realidade, perdemos perspetiva. E, depois, ninguém está aqui a mentir. A maneira como se vê é que depende da posição de onde se vê. E por isso é que nós temos a perspetiva, às vezes, do caos, do discurso político-mediático, temos a perspetiva do apocalipse, que é a perspetiva da perceção pública.

E não nos esqueçamos aqui de uma coisa: de acordo com estudos que são feitos sobre a justiça, estudos científicos, só 23% das pessoas em Portugal de idade adulta tiveram qualquer contacto com os tribunais durante a sua vida. E a maioria desses 23% só o tiveram uma vez apenas. Ou seja, como é que formam a sua opinião? Com a lente dos casos mediáticos. Aí está a vossa responsabilidade tão grande, razão pela qual devia haver uma preocupação enorme com a comunicação por parte das estruturas da justiça tradicional. Não demonizar o papel da imprensa, esse discurso é perigosíssimo. Informar é um direito e um dever, é um elemento de escrutínio, é um elemento fundamental da nossa democracia. A justiça é administrada em nome do povo e nós temos de ver a justiça a ser feita. E não é só a ser feita em tribunal, é termos a imprensa livre a dizer-nos como é que a justiça é feita.

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