A tecnologia ganhou uma importância ainda maior nas nossas vidas, neste contexto que vivemos em que temos de limitar algo que nos define como espécie: o contacto humano. Mas a tecnologia não é nada sem as pessoas. O movimento tech4Covid19 nasceu da vontade muito humana de ajudar o próximo.
O movimento, que surgiu da iniciativa de um grupo de fundadores da comunidade tecnológica portuguesa para combater a Covid-19, já lançou nove projetos e tem cerca de 30 em desenvolvimento. O impacto já se começa a fazer sentir, por exemplo através do projeto Rooms Against Covid, uma plataforma de alojamento gratuito para profissionais de saúde que não queiram pôr a sua família em risco ou que tenham sido mobilizados para outro local de trabalho. Esta plataforma, já ajudou mais de 350 profissionais a encontrarem um quarto ou uma casa em apenas um mês.
Gostaria de partilhar o que aprendemos até agora no tech4Covid19, em apenas quatro semanas. Ou melhor, desnudar o que aprendemos. Já perceberão o porquê da palavra.
A primeira tentação é pensar que os projetos em que nós próprios estamos envolvidos, além de únicos, são os melhores. Incorreto. Numa crise como esta, a verdade é que todos querem ajudar e surgem inúmeras iniciativas idênticas na sociedade civil. A primeira dificuldade das entidades públicas que os recebem é conseguir distingui-las, isto é, quais os projetos que são sérios e que têm meios suficientes para se tornarem realidade. Paradoxalmente, este processo drena, em vez de contribuir para aumentar os recursos, que se tornam escassos, destas organizações.
Percebendo isto, além de oferecermos os projetos tecnológicos que surgiram dentro do movimento tech4Covid19, colocamos também à disposição o talento dos mais de 4800 profissionais que já fazem parte da iniciativa, entre engenheiros, médicos, enfermeiros, gestores, advogados, jornalistas e muitos outros. Assim, os organismos públicos passam a ter mais e melhores recursos humanos para executarem os seus próprios projetos – os que surgem de planos estratégicos e das necessidades no terreno – e não aqueles que nós, como indivíduos, queremos realizar porque os idealizamos como necessários.
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Pergunto-me, por exemplo, porque existem e para que servem tantas campanhas de angariação de fundos? Num contexto de uma pandemia deveria pensar-se menos na visibilidade que garantem às entidades que as organizam e mais em concentrar esforços, fazendo-as convergir. Isto porque o difícil não é angariar fundos, mas utilizá-los corretamente. O que me leva ao ponto seguinte, os desafios do nosso projeto de obtenção de material hospitalar e de proteção individual.
Todos nós temos conhecimento da falta deste tipo de material na linha da frente de combate ao Covid-19 nos hospitais e noutros tipos de unidades de saúde, para além de em muitos outros locais, como nos lares e negócios que têm de permanecer abertos. A questão com que nos deparamos é de natureza ética: como e a quem distribuir o material que conseguimos adquirir que é tão escasso? Por isso, desenvolvemos um racional para o fazer, que seguimos cuidadosamente. O material conseguido pelo tech4Covid19 é distribuído a entidades públicas, como as Administrações Regionais de Saúde, que têm mais informação do que nós, e que, na realidade, têm a responsabilidade de o distribuir.
Mas o projeto de obtenção de material de proteção individual tem ainda outros desafios, como a relativa facilidade em comprar material sem os requisitos necessários, por fraude, ou até infetado; a especulação de preços; a concorrência entre os diferentes países, entre outros problemas. É importante que estas dificuldades sejam transparentes para todos. Contamos com a experiência da nossa equipa e a colaboração de entidades como o Infarmed para fazermos o melhor trabalho possível.
Apesar das necessidades atuais exigirem soluções que, à primeira vista, podem parecer tecnologicamente simples, podem não o ser do ponto de vista da segurança e da privacidade dos dados recolhidos. Esta questão é relevante, por exemplo, para as soluções de rastreamento de pessoas infetadas ou potencialmente infetadas com o novo coronavírus. Num contexto de pandemia, a facilitação das leis e dos regulamentos seria tentadora, mas a realidade é que a abertura de exceções coloca em causa as liberdades individuais.
Uma outra aprendizagem que não deve de todo ser ignorada é a exigência que projetos como este representam para quem os abraça. O trabalho remoto trouxe novos desafios no que trata de conciliar a vida pessoal e profissional. Quando o trabalho nas nossas empresas já nos ocupa frequentemente mais do que as horas desejadas e a ele se juntam novos projetos e a preocupação com o futuro, é relativamente fácil entrar em burnout. A causa Covid-19 é grande, mas não se deve sobrepor ao nosso bem-estar individual, correndo-se o risco de perdermos o talento que, com tanto afinco, temos colocado à disposição do país.
Por fim, deixo aqui uma última aprendizagem. Como se consegue gerir um grupo de trabalho tão grande, com vontades tão independentes e remotamente? Foi essencial criar uma equipa de coordenação, com um comando firme, e que consegue chegar aos intervenientes certos, no momento correto e disseminar informação capazmente. Depois, a todos os projetos é dada bastante autonomia, mas também sentido de responsabilidade. Apesar de o tech4covid19 ter apenas um fim social, lidamos, à semelhança das grandes empresas com fins lucrativos, com questões de gestão de recursos humanos, marketing e comunicação. A título pessoal, só posso ficar feliz por fazer parte desta iniciativa, juntamente com a Tonic App, a empresa de saúde digital que dirijo.
Daniela Seixas é voluntária no tech4covid19, médica neurorradiologista, doutorada em neurociências. É professora afiliada da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Concluiu um MBA Executivo na IE Business School e cofundou a Tonic App, a startup de saúde digital à qual se dedica atualmente como CEO.