- Comentar
Os algoritmos, as fórmulas matemáticas que gerem o funcionamento de aplicações digitais como os da Uber, Glovo e outros, são já o presente do trabalho. Permanecem no "segredo dos deuses", mas dirigem e organizam os serviços prestados por milhões de trabalhadores e exercem inclusivamente poder disciplinar ao bloquear a prestação de trabalho.
Relacionados
Bruxelas prevê contrato para 20% dos trabalhadores de plataformas
Foi este o entendimento do governo espanhol quando, esta semana, fez publicar alterações às leis laborais para reconhecer o trabalho subordinado dos estafetas que fazem entregas através de plataformas digitais. O que mudou? Na prática, mudou a norma sobre contratos que permite a quem fiscaliza distinguir uma falsa prestação de serviços, os chamados indícios de presunção de laboralidade.
A partir de agosto, em Espanha, passa a ser considerado trabalhador dependente quem faz entregas para empregadores que "exercem faculdades empresariais de organização, direção e controlo de forma direta, indireta ou implícita, mediante a gestão algorítmica do serviço ou das condições de trabalho, através de uma plataforma digital".
A decisão, na senda do reconhecimento dos estafetas da Glovo como trabalhadores da plataforma pelo Supremo Tribunal Espanhol, em setembro, vê no misterioso algoritmo a mão de um empregador. Esta decisão obriga, também, a que os trabalhadores sejam informados "dos parâmetros, regras e instruções em que se baseiam os algoritmos ou sistemas de inteligência artificial que afetam a tomada de decisões que podem incidir nas condições de trabalho, acesso e manutenção do emprego, incluindo a elaboração de perfis".

Leia também:
Quem emprega quem? Regulação de trabalho a partir de apps vai avançar
Subscrever newsletter
Subscreva a nossa newsletter e tenha as notícias no seu e-mail todos os dias
O algoritmo "é um espécie de patrão, ou o alter-ego do patrão", reconhece João Leal Amado. O especialista em direito do trabalho, com investigação sobre o trabalho em plataformas digitais, acredita que nas orientações das aplicações pode estar também a chave para mudar a lei em Portugal.
"O algoritmo acaba por exercer muitos dos poderes tradicionais do empregador, de fiscalização, até de avaliação", diz João Leal Amado.
"O algoritmo acaba por exercer muitos dos poderes tradicionais do empregador, de fiscalização, até de avaliação. A relação de dependência pode passar justamente pela dependência via algoritmo. Pode ser um elemento importante na tal presunção de laboralidade que venha a ser criada", admite.
Mas, aquele que será o futuro próximo do estafeta espanhol, em três meses, está longe de ser o futuro do trabalhador de plataformas digitais por cá. O governo português pretende também mexer nas regras de presunção de laboralidade para reconhecer o trabalho nas plataformas, mas a orientação poderá ser diferente.
O Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, em discussão com os parceiros sociais, fala em sublinhar que "a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital".
Por outro lado, só no trimestre final de 2022 é que o governo pretende entregar no parlamento uma proposta legislativa e, entre os parceiros sociais, está-se longe de qualquer consenso.
A Confederação de Comércio e Serviços (CCP), por exemplo, considera desde já a orientação do Livro Verde "tendenciosa" e capaz de "desvirtuar a própria figura do contrato de trabalho". Já a UGT aplaude a opção de se mexer nos indícios que servem para determinar que há trabalho dependente, mas alerta que as empresas que gerem as plataformas terão de disponibilizar informação para que possa haver presunção de contrato de trabalho. A CGTP acredita que "não será necessário inventar nada, mas simplesmente integrar estas relações laborais no quadro laboral vigente, obrigando as grandes empresas que detêm as plataformas a cumprir as leis do país".
Ainda não são conhecidas as posições de todas as confederações patronais. João Leal Amado acredita que esta não será matéria pacífica. "De certeza que vai haver uma imensa luta política, sindical, lóbis em torno disto. É uma matéria em que há muitos interesses envolvidos".
Mas quem trabalha para as plataformas entende que não pode esperar pelo fumo branco do Livro Verde e pede transparência do algoritmo para resolver um problema do presente: garantir que fixação das tarifas-base no transporte por plataformas cobre os custos básicos da atividade.
O STRUP diz que não quer conhecer o algoritmo, mas quer tarifas mínimas definidas pelo regulador. E, para isso, este terá de saber as regras que as plataformas usam para definir as tarifas.
"Em relação aos critérios subjacentes à constituição deste algoritmo, não nos interessa que os trabalhadores tenham conhecimento. Interessa-nos é que haja uma entidade neutra - neste caso, a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes - que tenha conhecimento desses critérios, e que avalie se de facto estão condizentes com o custo da atividade", diz Fernando Fidalgo, do Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal (STRUP).

Leia também:
Motoristas de TVDE "muito dificilmente" são trabalhadores independentes, diz ACT
A organização tem hoje um grupo de trabalho próprio para sindicalizados da atividade de Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica (TVDE), cujo regime já prevê que as tarifas definidas pelas plataformas têm de cobrir os custos de atividade suportados pelos motoristas, onde entram manutenção de veículos, seguros, combustíveis, entre outros.
O STRUP diz que não quer conhecer o algoritmo, mas quer tarifas mínimas definidas pelo regulador. E, para isso, este terá de saber as regras que as plataformas usam para definir as tarifas.
Outra questão é o bloqueio de motoristas pelas aplicações. "Procurámos clarificar, mas está no segredo dos deuses, até para a própria Administração Central que, quando questiona as plataformas, tem a mesma resposta: é da inteira responsabilidade da plataforma e não têm de dar informação sobre os critérios quer para estabelecer preços quer para aplicar sanções".
Também aqui, o sindicato não pede para conhecer a fórmula usada para excluir trabalhadores do serviço e quer apenas garantir o direito de audição dos motoristas. "Que haja sanções e poder disciplinar a quem de direito. Mas não pode haver uma sanção sem que o trabalhador possa defender-se. É assim em qualquer mercado de trabalho".