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O governo decretou o encerramento das livrarias (tal como de outros espaços comerciais) no âmbito do estado de emergência lançado neste ano de 2021. Além disso, as livrarias não podem vender ao postigo e superfícies comerciais como supermercados, hipermercados, bombas de gasolina e quiosques também não podem comercializar livros. A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) tem alertado para as duras consequências desta decisão do Executivo. Pedro Sobral, vice-presidente da APEL, alerta que o comércio online em Portugal tem pouca expressão e que não substitui os canais tradicionais.
Como foi o ano de 2020?
Foi um ano complicado. O mercado em Portugal perdeu cerca de 17% do valor. Foi o país na União Europeia (UE) que mais perdeu em valor do mercado de venda de livros. O segundo país que mais perdeu, perdeu cerca de 1%. Depois, a maior parte dos países, como a Alemanha, Holanda, Itália, França ou Reino Unido - que apesar de não pertencer à UE fornece dados para o painel da GfK - subiram de valor. Com os confinamentos, as pessoas leram mais e compraram mais. Portugal foi o país que mais perdeu na UE. Foi um ano catastrófico. No primeiro trimestre, [tipicamente] os editores e livreiros estão ainda a fazer as contas de Natal, a perceber as devoluções, a proceder aos pagamentos e recebimentos de Natal e a preparar para, a partir de março e abril, fazer os pagamentos aos autores. Foi com este enquadramento extraordinariamente difícil de 2020 que, de repente, nos deparamos com esta proibição de venda de livros que torna tudo isto quase inimaginável.
Consegue arriscar o nível de encerramentos?
O setor livreiro e editorial é profundamente fragmentado. Do lado editorial, há centenas de editoras - pequenas, médias e grandes - sendo que a esmagadora maioria são pequenas e médias estruturas empresariais. Do lado livreiro, tirando três cadeias de retalho especializado, o resto são pequenas estruturas de uma ou duas unidades livreiras. Esta fragmentação não permite dizer, com dados, qual o número de empresas que poderão estar neste momento em dificuldade ou encerrar portas nos próximos tempos. O que posso dizer é que, perante a situação atual - mesmo antes do que aconteceu neste primeiro e segundo estado de emergência [de 2021] - muitas empresas - pequenas, médias e grandes - já estavam com enormes dificuldades.
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No primeiro trimestre de 2020, antes do confinamento, estávamos a chegar ao valor de mercado que existia em 2011. Com a grande crise financeira em que estivemos houve uma quebra importante no mercado e só estávamos a chegar a esses valores no primeiro trimestre de 2020. Tendo perdido 17% em 2020 e, entrando neste trimestre [de 2021] numa situação destas, a lógica diz-me que todo o setor vai ser severamente afetado. Há algumas que poderão ter de encerrar portas e há outras que terão muitas dificuldades ao longo do ano para conseguir manter uma operação viável. Estamos no reino das probabilidades porque não tenho dados, mas, mesmo as que mantenham as portas abertas após o confinamento que sabemos com alguma certeza que vai até ao final de março, vai haver a necessidade de aligeirar custos através de despedimentos, edição de muito menos livros e tudo o que está envolvido na gestão de um negócio tão complexo e específico. É importante termos este panorama e é importante perceber que aquilo que, neste momento, foi decidido pelo governo português coloca em xeque a diversidade e sobrevivência de todo um setor.

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Vamos ser um país que compra ainda menos livros? Ou vamos passar a comprar em plataformas online?
Muito daquilo que acontece tem a ver com um mercado relativamente pequeno. Os índices de leitura são baixos, não há um grau de literacia em Portugal que possa estar ao nível de países como por exemplo como a Grécia ou a Espanha. Isso levanta uma série de complexidades mesmo antes de toda esta catástrofe que estamos a viver.
Os editores e livreiros, num panorama tão difícil e pré todo este problema [proibição das livrarias venderem ao postigo e impedimento de venda de livros em supermercados], já tinham enormes dificuldades. Apesar disso, creio que é preciso que fique bem claro: os livreiros e editores foram mantendo essa diversidade e capacidade de escolha, de forma a agradar e continuar a manter na leitura aqueles que felizmente estão na leitura, mas também para trazer novos leitores e pessoas para uma ferramenta que, para nós, é crítica e essencial. É por isso que o bem é considerado essencial. Não é por aleatoriedade que o livro tem um regime especial de IVA a 6%.
Entrando num período catastrófico destes em que os editores e livreiros têm muita dificuldade em manter as portas abertas, vamos estar perante uma redução da oferta e diversidade, de um acesso ainda mais difícil ao livros e aos conteúdos que são, na nossa opinião, aqueles que podem levar a sociedade portuguesa a outro nível e com mais dificuldade em comprá-los. Sobre os grandes distribuidores digitais, dou um dado: no período de confinamento a compra online de livros representou entre 9 a 10% dos livros vendidos em Portugal. E desses, 90% das pessoas que compraram são da Grande Lisboa e do Grande Porto. Não há um hábito ainda de compra online. Mesmo até no comércio em geral.
Imaginar que, de repente, entra um desses gigantes distribuidores online em Portugal, e que podemos a partir daí substituir os canais de venda tradicionais é um mito. Há outro problema: é preciso perceber o quão fundamental é o papel do livreiro. O papel do livreiro não é apenas um mero ponto de venda; é muito de curadoria. O livreiro tem um papel essencial nesta cadeia de valor. Por isso, acharmos que o online vai de repente transformar todo o mercado num oásis, em que toda a gente de repente compra, porque é fácil, estamos a passar ao lado do papel fulcral do livreiro mas acima de tudo da necessidade de ter livrarias porque o comércio online em Portugal não tem o peso. Não me parece que seja por aí a solução deste mercado. Não é por aí também que vamos formar leitores
Com a proibição de vender livros em supermercados, em vigor com o estado de emergência, o que é que vai acontecer aos livros que estão em stock e não são vendidos?
As livrarias, os supermercados, as bombas de gasolina e outros pontos de venda, são acima de tudo complementares. Olhamos para os dados que a GfK nos dá e percebemos que há muito mais complementaridade do que substituição. O que é extraordinário nesta proibição é que, não tendo falado connosco, não quiseram ter acesso aos dados, que são do primeiro confinamento.
No primeiro confinamento, às livrarias era permitido vender ao postigo e todos os restantes pontos de venda que estavam abertos podiam vender livros. Durante o primeiro confinamento todos perderam. Houve perda por razões óbvias em todos os canais e quando foi levantado o confinamento até ao final do ano as quotas de mercado dos canais respetivos voltaram a reequilibrar exatamente como estavam antes do confinamento. O que prova que não houve nem substituição nem um problema de desequilibro de mercado. Mais: pré-confinamento, quem estava a ganhar mais quota eram as livrarias e o canal livreiro face à grande distribuição. Os canais funcionam em lógicas diferentes, não só em distribuição mas também na tipologia de cliente e consumo.
Relativamente à especificidade do mercado, o grande problema, além da faturação zero, é também esse: o canal livreiro - qualquer um deles - pode devolver aos editores a qualquer momento as quantidades que têm em stock. Os editores que já têm o problema de 2020 como falámos, e que estavam neste primeiro trimestre a perceber como é que iam adaptar o seu negócio às novas circunstâncias, podem deparar-se com o facto de além de ter vendas zero, poderem passar a vendas negativas e portanto colapsar o setor por completo. É essa a especificidade do setor. A todo este drama acrescenta esta possibilidade de devoluções.

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A questão dos apoios é um dos grandes problemas?
O setor livreiro e gráfico está sob a tutela do ministério da Cultura. No primeiro confinamento, o ministério da Cultura decidiu atribuir 15 milhões de euros a outro setor, que é a comunicação social. Não estou a pôr em causa este valor. O que digo é que o mesmo ministério que também tem a tutela do setor editorial e livreiro, atribuiu 15 milhões à comunicação social e 600 mil euros ao setor livreiro e editorial - 300 mil para pequenas e micro editoras e 300 mil pequenas e micro livrarias.
Neste segundo confinamento, o mesmo ministério da Cultura atribuiu 48 milhões ao setor da Cultura - não estou a pôr em causa se o valor é suficiente ou justo. Ao setor editorial e livreiro, mais uma vez, 300 mil euros para os micro e pequenos livreiros e mais 300 mil euros para micro e pequenos editores. O setor editorial e livreiro é na fileira da cultura o que mais valor acrescentado bruto traz à economia portuguesa; é o setor que emprega direta e indiretamente mais pessoas e é o que produz, distribui e vende um bem essencial chamado livro, que tem um IVA a 6%. Há aqui uma completa desproporção e falta de atenção ao setor que mais importante é na fileira da cultura e o que menos recebeu.
Não vimos deste ministério da Cultura, desde que temos esta ministra, qualquer ideia, estratégia, plano-estratégico, qualquer plano que permita o incentivo da leitura e ao consumo de livros. Não ficámos surpreendidos por estes apoios que são insignificantes. Perante esta ausência de apoios, atenção e foco estratégico nesta área, parece-me ainda mais espantoso que proíbam ao menos que os editores trabalhem sozinhos. Se o livro pode ser vendido nos pontos de venda que estão abertos e se as livrarias por exemplo poderiam vender ao postigo, pelo menos havia aqui uma receita mínima.
As alturas de crise, muitas vezes, levam a movimentos de consolidação nas empresas. O setor, na vossa perspetiva, tem margem para isso?
Não me parece que seja uma situação sequer equacionada. Não posso tentar ser adivinhar o futuro. Tudo é possível. Não me parece, no entanto, que estejam criadas as condições para algo desse género. A consolidação e fusão em setores tão específicos como o setor editorial e livreiro, parece-me que obedece a outro tipo de condições que não no meio de uma crise em que a incerteza é enorme e onde, acima de tudo, as empresas estão num processo de modo sobrevivência mais do que encontrar na consolidação uma alternativa para essa sobrevivência. Diria que não me parece que seja um cenário visível a curto ou médio prazo.