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Em 2008, Miguel Pina Martins pegou em pouco mais de mil euros de poupança para fundar uma empresa de brinquedos didáticos e científicos, a Science4You, que hoje dá emprego a 300 pessoas, exporta para 35 países e tem presença direta em Espanha e no Reino Unido. Neste ano, já em plena pandemia, foi um dos fundadores da Associação de Marcas de Retalho e Restauração criada para defender estes setores, que estão entre os mais afetados pela crise.
Quantos postos de trabalho já foram destruídos no retalho e na restauração nesta pandemia?
É uma pergunta difícil. Na restauração foram mais, porque houve um efeito mais imediato do que no retalho - que teve sempre ao fundo do túnel a esperança que se chama Natal: os empresários tentaram chegar até lá e perceber o que aconteceria depois. Como a restauração não tem Natal, o verão é para esse setor bem mais relevante do que esta época, acabou por não ter esse efeito e por haver uma readaptação muito maior. Não sei quantos são ao certo, mas vários grupos de dimensão grande reduziram a metade os trabalhadores... fala-se em 75 mil pessoas , não posso confirmar o número, mas acredito que seja um valor relativamente preciso. Esperemos agora que os períodos mais difíceis já tenham passado, ainda que novembro e dezembro estejam a ser péssimos em comparação com outros anos. Só para termos noção, a semana passada foi a pior desde o início da pandemia em termos de queda, foi pior até do que a reabertura após o primeiro confinamento. Isso é extremamente preocupante, porque até setembro foi-se recuperando, obviamente sempre em queda, mas recuperando até chegar aos 25% de quebra, e agora já vamos de novo em quase 50% de queda - o que é dramático para os nossos associados, que representam cerca de 3500 espaços. Isto é dramático para a sobrevivência destas empresas. Vamos ver o que acontece em janeiro, mas vai ser muito, muito duro.
A vacinação arranca em janeiro. Ainda vamos a tempo de evitar danos maiores no retalho e na restauração? Ou já vem tarde?
Vem sempre tarde... mas mais vale tarde do que nunca. Tivemos recentemente a questão das rendas dos centros comerciais e tudo é bem-vindo para conseguir salvar emprego. Esta crise só consegue vencer-se se salvarmos o emprego, porque se começarmos a ter uma avalanche de desemprego, como infelizmente está a acontecer, será muito danoso para o Estado, que vai ter de começar a pagar subsídios. E enquanto as pessoas estão nas empresas há alguma produção para a economia; no desemprego, isso é muito perto de zero. Portanto, a defesa desta crise tem de fazer-se pela defesa dos postos de trabalho e todas as medidas que vierem e puderem ajudar as empresas a mantê-los são muito bem-vindas para podermos passar o cabo das tormentas.
Vídeo: "Recuperação não é em V nem em U mas em K"
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O que será em breve?
Sinceramente não sei quando será. Acho que a nível sanitário já foi ultrapassado, mas a nível económico ainda falta um bom bocado para lá chegarmos.
Vamos ter um primeiro semestre ainda difícil, com muitas falências e desemprego?
Sim, acho que vai ser muito difícil sobretudo ao nível do retalho, porque esta área já está a sofrer e a seguir esse sofrimento vai chegar à indústria, o que é preocupante. Nós temos, na Science4You, os dois lados: indústria, que é a principal fonte de rendimentos, e retalho. E entendemos que na exportação correu tudo relativamente bem neste último semestre porque havia esperança de haver Natal. Mas em França e no Reino Unido, por exemplo, as lojas estiveram fechadas quase todo o mês de novembro, ou seja, vai sobrar muito stock. E sobrando, o que vai acontecer é que o início do ano haverá muito menos encomendas. Vai ser muito duro a nível global - e em Portugal também. Temos agora retalho, restauração, hotelaria e eventos a sofrer e vamos ter esse sofrimento a seguir na parte industrial, o que vai agudizar a crise, nomeadamente no desemprego, que infelizmente acredito que vai continuar a subir, exceto se se fizer algo muito forte para parar esse tsunami.
E que efeito pode ter a subida do salário mínimo (SMN) nesse tsunami?
Vai obviamente trazer mais custos e mais desemprego. O que nós pedimos ao governo - e têm saído medidas nesse sentido - é que ajude na parte dos encargos. É bem-vindo esse apoio pela TSU e se puder ser feito mais deve ser feito, porque as empresas neste momento, principalmente as que têm de recorrer ao SMN - restauração, retalho, mão-de-obra pouco especializada - vão ter mais um encargo num momento em que a procura desce bastante e a oferta é a mesma, o que poderá trazer mais um desequilíbrio num ano já especialmente complicado. O nosso apelo é que todas as medidas vão no sentido de minimizar esse aumento de custos numa altura em que estamos a passar a maior crise de sempre. Até porque a recuperação que todos diziam que ia ser em V ou U parece que será um K: uns vão crescer e conseguir safar-se bem mas outros continuarão a cair. Restauração, hotelaria, cultura e eventos vão continuar a ter problemas pelo menos no primeiro semestre, é garantido. Por isso pedimos que sobretudo a esses setores mais afetados não sejam colocados mais encargos - mesmo compreendendo todas as questões sociais. Acho que ninguém é contra o aumento do salário mínimo, mas se calhar pode não ser o ano ideal para o fazer com envergadura e um custo total muito grande para as empresas.
Vídeo. Salário mínimo: "tem de ser feito mais" para compensar as empresas
Mas a compensação que respeita à TSU, anunciada pelo governo, não chega?
Tudo que não reponha os custos iguais será sempre genericamente insuficiente, sobretudo para estes setores mais afetados. Tudo o que aumentar os custos das empresas não chega. É uma ajuda e todos estão de acordo que o SMN deve subir, mas neste momento é complicado que suba à custa das empresas. Se não vamos ter aumento da procura, crescimento da economia, terá de ser feito por adaptação - e o que acontece nestas adaptações muitas vezes é que o emprego se reduz. E o efeito será contrário ao pretendido, que devia ser dar mais rendimento às pessoas. As que conservarem o emprego até podem ter mais rendimento, mas pode haver mais desemprego porque as empresas não conseguem pagar todos os salários. Acredito que o governo estudou as teorias económicas e tomará as decisões mais acertadas dentro das limitações que existem.
Disse que a crise vai atingir também a indústria. É possível que chegue também à banca, que se transforme numa crise financeira?
Esse é o grande risco - e a banca também tem falado sobre o tema. A questão das moratórias é muito relevante - já fizemos um pedido ao governo para que possam ser estendidas as moratórias, sobretudo à parte do retalho e do comércio, que não está toda coberta por moratória de juros e capital. E deixamos aqui também o apelo para que esse apoio seja repensado e se dê mais tempo a estas empresas. Se não, o problema passará para os bancos, porque o malparado crescerá, depois será preciso capitalizar os bancos e neste momento não há muito capital para isso...
E bancos menos endividados dão menos crédito...
Sim e sabemos também que bancos endividados acabam por pedir dinheiro ao Estado, ou seja, a todos nós - vimo-lo na CGD, no NB, no Banif... Por isso também esse apelo para as moratórias se estenderem o máximo possível.
Vídeo: Science4You começou a produzir álcool gel por "instinto de sobrevivência"
De que forma é que a covid afetou a Science4You? Chegaram a parar a produção?
Não, estivemos em serviços mínimos em abril, com lay-off mas sem chegar a toda a gente; e regressámos mais cedo do que previsto, não por causa dos brinquedos - tirando o Natal, as festas de aniversário são o maior potenciador de vendas ao longo do ano e nesta altura não existem -, mas porque começámos a produzir álcool gel e óculos e proteção durante os meses mais ativos do início da pandemia. E acabámos assim por conseguir refocar-nos e sobreviver. Foi mesmo instinto de sobrevivência: olhámos à volta, vimos as encomendas todas canceladas e pensámos no que é que íamos fazer para manter os empregos - são muitas famílias...
Como foi esse processo de adaptação? Foi feito em 15 dias...
Tivemos muita sorte porque temos uma sala de produção de produtos cosméticos - temos perfumes e sabonetes para os miúdos fazerem e o que se passa numa sala de produção de sabonetes e perfumes é muito semelhante ao processo de produção de álcool gel. Conseguimos por isso fazer uma adaptação muito rápida. Na parte dos óculos de proteção, já tínhamos o molde porque os brinquedos têm sempre um invólucro de proteção que é obrigatório nos brinquedos químicos e é certificado. E éramos quase a única empresa na Europa a ter esse molde de óculos - normalmente comprados na China. Isto nasce de uma conversa com um médico que está em casa, abre um brinquedo e liga-nos a dizer que precisa que forneçamos óculos de proteção porque não há outros no mercado, portanto isto funcionou muito por acaso. E a partir daí tirámos até dos brinquedos para os comercializar, fazer chegar a hospitais, lares, à proteção civil. E foi uma felicidade para nós ajudar a proteger estas pessoas que estavam no terreno a tentar salvar vidas.
As mudanças que a pandemia forçou, como a venda online, vieram para ficar?
Sem dúvida. As vendas online já tinham um crescimento enorme e foram catapultadas. No mercado da Science4You o crescimento foi de mais de 500%. As pessoas ganharam essa apetência e há quem diga que Portugal acelerou nestes tempos uns cinco anos - também estávamos atrasados em comparação com outros. Isso tem sido uma ajuda, mas não é o mesmo que ter lojas abertas, porque o crescimento parte de uma base relativamente reduzida no online direto em Portugal - vendemos muito mais para fora.
Vídeo: Óculos de Proteção a pedido de um médico que os viu num brinquedo e não os tinha no hospital
A Science4You já vende mais para fora do que em Portugal?
Sim, sim, e esperamos manter esse caminho. No ano passado chegámos a 75% de vendas ao exterior e neste ano, se tirarmos o efeito álcool gel e óculos, estarão nos 80%.
Tentou levar a empresa para bolsa mas acabou por desistir devido à fraca procura. Foi um adeus definitivo ou só um até já?
Adeus definitivos não existem, mas neste momento não há condições para isso. Foi difícil, porque acreditávamos que fosse possível - e acabou também por mudar o rumo da empresa no que respeita a planos de desenvolvimento e crescimento. Mas será um até já, que não será para já... mas não fechamos a porta a nada.
O recurso aos mercados é muitas vezes apontado como solução para as empresas se financiarem, em alternativa ao crédito, mas em Portugal acontece pouco. Porquê?
É uma boa pergunta, nós tentámos que isso fosse mentira... não foi possível. Seríamos a segunda empresa portuguesa a fazê-lo em 2018 e foi um murro no estômago porque achávamos que íamos conseguir... Eu acho que está muito relacionado com questões de empreendedorismo e da forma como a sociedade está montada. As pessoas hoje têm muita aversão ao risco, o que há 500 anos não existia. Mas depois desses anos dos Descobrimentos, os portugueses foram perdendo essa vontade de arriscar - e isso também está muito relacionado com a criação de novas empresas, com o fomento ao empreendedorismo. E não é só português, é uma questão europeia. As cinco maiores empresas americanas são relativamente jovens e nascidas de empreendedores bastante conhecidos - Apple, Google, Microsoft, etc. E as cinco maiores europeias são todas do antigamente: BP, Shell, HSBC, Santander... Isso tem muito que ver com aversão ao risco.
Mas Portugal é muitas vezes caracterizado como o paraíso das startups...
Acho que tivemos um bom momento e vários fatores ajudaram a isso... Mas é algo que tem de ser alimentado, porque o mundo das startups é, no meu entender, o caminho para sair da crise. Acredito que Portugal tenha essas características, mas é preciso continuarem a existir fundos, a investir-se e apostar, essa aposta tem de se manter muito tempo. E é sempre boa altura para retomarmos a missão de sermos um país de startups. Até porque acho que é a única maneira de voltarmos a ter taxas de crescimento de 3% ou 4%.
Os brinquedos da Science4You têm sempre um pendor educativo e de alguma forma ligado à ciência. Lançaram agora um novo jogo, o Antivírus, na Europa. Como é que funciona?
Esse é precisamente o nosso ADN. Tentámos ter um brinquedo que tivesse que ver com esta questão da pandemia e que permitisse às crianças perceber e aprender sobre o vírus de forma divertida. Este é um brinquedo que permite fazer uma viseira, uma máscara, permite fazer aquela experiência famosa de largar uma gota de detergente e ver as bactérias afastarem-se, dá para fazer bactérias, dá para criar sabonetes que eliminam o vírus, ensina a lavar as mãos... são 15 experiências com o mesmo pensamento: aprender enquanto brinca. E esse laboratório tem sido um sucesso em toda a Europa.
Quantas unidades vendidas?
Já estão no mercado mais de 20 mil, esperemos vender todas até ao Natal mas tem sido um input muito positivo e estamos muito contentes.
Poderá salvar o Natal?
É difícil, tendo em conta como estão as coisas - sobretudo com as lojas fechadas em França e no Reino Unido, com muitas restrições na Alemanha... É muito complicado salvar o Natal. Mas esperamos um acelerar das vendas que ajude. Ainda que a minha preocupação maior neste momento seja o primeiro semestre, que acho que vai ser muito duro. Quando derem as 12 badaladas do dia 31 de dezembro, o vírus não se vai embora, vai continuar a estar cá. E na questão económica ainda durante muito tempo.