- Comentar
O preço dos medicamentos genéricos caiu 67%, na última década, em Portugal. Este cenário, aliado a um contexto de guerra na Europa, à escalada da inflação e ao aumento dos custos industriais tem adensado a rutura do stock de medicamentos. A líder da Associação Portuguesa de Medicamentos Genéricos e Biossimilares (APOGEN) defende, por isso, urgência na criação de "um novo sistema de formação de preços" para manter a engrenagem do setor em andamento.
O governo acedeu a uma subida de 5% para os medicamentos cujo preço de venda ao público seja de até 10 euros, mas, para a também presidente do Conselho de Administração do Grupo Tecnimede, a medida "não é suficiente". Maria do Carmo Neves garante que o país tem condições para fornecer o mercado nacional, sendo necessário, para isso, uma "colaboração entre o Ministério da Saúde e as empresas", assegurando que a indústria farmacêutica poderá ser uma aliada na criação de riqueza em Portugal.
Os genéricos permitiram ao Estado e às famílias uma poupança superior a 500 milhões de euros, em 2022. Poderia haver mais ganhos nesta relação?
São números muito significativos. A poupança do ano passado, correspondente a 509 milhões de euros, permitiria construir dois hospitais de Lisboa Oriental. Na última década, a poupança é superior a 5,7 mil milhões de euros, o que equivale a dois anos de custos com medicamentos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). As verbas disponibilizadas por esta poupança permitem ao Ministério da Saúde introduzir no armamentar terapêutico a inovação que é cara, é protegida e todos necessitamos de lá chegar, quer tenhamos capacidade financeira ou não. Se o SNS não for sustentável esta inovação nunca entrará. Os medicamentos genéricos têm um papel económico, social e de saúde.
É possível introduzir mais medicamentos genéricos no mercado, até para compensar a falta de alguns fármacos, por exemplo, em áreas como a diabetes?
O medicamento genérico é uma classificação administrativa que vigora no mercado no dia a seguir à propriedade intelectual do produto inovador (que depois passa a ser de referência) terminar. Todos os anos são introduzidos novos medicamentos, porque todos os anos há produtos cujas patentes terminam. Em relação à diabetes, nos próximos cinco ou seis anos, a maioria dos produtos para tratamento irão perder a patente. O que significa que a fatura do SNS com este tipo de produtos será mais baixa, uma vez que o preço do genérico é, no mínimo, 50% inferior ao produto de referência. Já as faltas ou as ruturas irão sempre existir, seja por causa de problemas da fábrica, de qualidade, ou por falta de disponibilidade em colocar a mesma molécula no mercado. Mas, nos últimos dois anos, a pandemia e a guerra trouxeram consequências graves nos circuitos e nos abastecimentos. Tínhamos processos de fabrico de quatro meses e estamos agora com oito meses a um ano. Houve ainda a subida astronómica dos preços, com aumentos de 300% a 400% neste setor. Temos menos disponibilidade destas matérias-primas e temos um preço muito baixo em Portugal. Os preços muito baixos aliados à subida dos custos industriais, na ordem dos 30%, resulta num desencanto comercial. Não havendo retorno, as empresas não vendem e quanto mais vendem mais dinheiro perdem. Neste momento, temos tido muitas ruturas, que têm estado melhoradas, e há um sinal do senhor ministro [da Saúde, Manuel Pizarro] no sentido de melhorar o preço em 5% dos medicamentos cujo preço de venda ao público seja até 10 euros. É insuficiente, mas é um sinal.
Relacionados
DGS autorizada a despender 1,8 milhões de euros para reservar vacinas para a gripe
Infarmed alarga lista para 137 medicamentos com exportação suspensa
Em que áreas têm existido mais ruturas?
As ruturas de stock são transversais. De qualquer modo, o que os media comunicam é que são o paracetamol e os antibióticos para as crianças. Isto tem a ver com uma situação da pandemia e do preço baixo que se pratica a nível europeu nos medicamentos genéricos. Este problema já era anterior, mas foi agudizado pela pandemia e pela guerra. O principal pagador pelas comparticipações é o Estado que, por querer reduzir a fatura do medicamento, reduz o preço a pagar e toda a cadeia comprime no sentido de baixar preços. Chega-se a uma altura em que não há mais, e concentram-se as empresas para produzir substâncias químicas. Neste momento, por exemplo, há apenas um fornecedor mundial de amoxilina [antibiótico usado no tratamento de diversas infeções bacterianas]. São situações que não podem ser permitidas e a indústria farmacêutica, sendo um setor essencial, tem de ser olhado de outra maneira para que não tenhamos falta de medicamentos.
Mas acredita que este aumento dos preços em 5% não é suficiente para evitar a falta de stock?
Não, fica longe. Temos um aumento dos custos industriais de 30% e esta subida de 5% não cobre o aumento de custos. O mecanismo de criação de preço tem de ser alterado, porque temos preços regulados que não nos permitem refletir este agravamento dos custos industriais no preço de venda ao público do medicamento. Somos nós que temos de absorver estes custos e, ao fazê-lo, se não houver interesse comercial, entramos em rutura. E os custos da energia e dos transportes também subiram. Precisamos de um novo sistema de formação de preços. Quando vamos a um supermercado o aumento dos custos é refletido no cliente, tem de haver um mecanismo que permita que a indústria não se desincentive.
Subscrever newsletter
Subscreva a nossa newsletter e tenha as notícias no seu e-mail todos os dias
Que atualização permitiria dar uma resposta?
Aumentar em linha com a inflação, o que nos colocaria no mesmo patamar. Há 20 anos que os preços dos medicamentos, genéricos ou não, não subiam. De 2010 até hoje, a redução de preços foi de 67%. Em 2010, o preço médio era de 11 euros e atualmente é de 7,4 euros.
E isso tornou este mercado menos atrativo, levando ao desaparecimento de vários medicamentos?
Ao nível de mercado comunitário. Se olharmos para o mercado hospitalar, a situação é muito mais grave e as ruturas são mais graves porque os concursos ficam desertos. Tem de existir uma otimização dos processos, nomeadamente para o Estado não gastar mais dinheiro. Não vou dizer que os doentes não são tratados a nível hospitalar, são tratados, mas é com medicamentos mais caros ou mandando vir do estrangeiro as mesmas moléculas que poderiam ser fornecidas aqui. Portugal, com a sua indústria transformadora e chamando fábricas de medicamentos, tem capacidade para fornecer o mercado concorrencial a 100%.
A tutela tem ignorado os problemas de sustentabilidade do setor?
A tutela da indústria farmacêutica é o Ministério da Saúde e não posso criticar um ministério que tem um orçamento limitado e que tem os custos que sabemos com a saúde em Portugal. Eles tentam gerir a sua casa no sentido de poder pagar tudo o que compram. Como têm uma ferramenta na mão que são os principais clientes da indústria farmacêutica, por causa das comparticipações, de certa maneira são o árbitro e controlam, e há cortes muitas vezes cegos que não deveriam existir. O medicamento em Portugal é economia e é criação de riqueza porque somos os exportadores. Toda a queda de preço que tivermos cria um problema nas exportações. Vamos ter de exportar mais barato porque Portugal é um país de referência para a América Latina, para o Médio Oriente e para alguns países da Ásia. Tudo o que for feito em termos negativos no Ministério da Saúde para controlar a despesa, a economia fica afetada. Tem de haver algo que se introduza no sentido de os cortes cegos terem de ser balizados. A indústria farmacêutica é altamente tecnológica, é dos setores mais produtivos e poderia ser um aliado do Ministério da Economia para a criação de riqueza.
O que falta para chegar a essa meta?
Falta a definição de objetivos claros, a coordenação dos vários intervenientes e falta a continuidade da estratégia, no meu ponto de vista. Não há opções, cada uma das empresas caminha por si, internacionalizando-se de forma a ser sustentável.
Como caracteriza o setor farmacêutico em Portugal?
Tem havido, nos últimos 30 anos, algum desinvestimento na parte fabril, mas tem sido em todo o mundo ocidental com a deslocalização de fábricas para a Índia e para a China. Há ainda os resistentes - e na associação que presido estão as seis maiores empresas produtoras - responsáveis pela maioria das exportações, no valor de 1,4 mil milhões de euros. Fala-se muito nas reservas estratégicas e nos produtos essenciais e a Europa com os Estados-membros tem debatido em a política da indústria farmacêutica e a sustentabilidade. Esta indústria consegue fazer essa parte. Os medicamentos essenciais são fabricados em Portugal, temos altas tecnologias para fazê-lo e a reserva estratégica, não há necessidade de fazer armazenamento destes produtos. É necessária uma colaboração entre o ministério da Saúde e as empresas porque temos a capacidade de fornecer o mercado português.
Além dos aumentos em linha com a inflação, que resposta é essencial dar para garantir a sustentabilidade do setor?
Estes aumentos são um sinal muito importante. Penso que o senhor ministro [Manuel Pizarro] conhece bem o setor, conhece bem a área médica e está aberto para colaborarmos, veremos o que é que acontece. Há várias medidas que a associação tem vindo a propor à tutela que não custam dinheiro e que são de organização. Por exemplo, o preço de referência dos medicamentos genéricos e o grupo homogéneo abre ao fim de dois meses de ser introduzido no mercado. Defendemos a antecipação de um mês deste prazo, o que permitiria uma poupança de 25 milhões de euros - que é o equivalente ao custo dos medicamentos do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Coimbra. Se analisarmos as comparações com os custos que temos, são medidas simples e administrativas que não custam dinheiro ao Estado, pelo contrário.
Disse, recentemente, que serão lançados no mercado novos medicamentos nos próximos anos. Quantos serão e para que tipo de áreas terapêuticas?
Ao nível de farmácia comunitária temos os anticoagulantes e os antidiabéticos e que resultarão numa poupança, até 2026, de mais de 900 milhões de euros - sobreponível à poupança de 2022 dos 500 milhões de euros. A nível hospitalar temos vários produtos que contribuem para o aumento da despesa grande que vão terminar a patente, produtos para a oncologia e para as doenças autoimunes. O medicamento genérico a nível hospitalar chega a atingir um preço 98% abaixo do preço de referência.
Como olha para a política do governo para a indústria de medicamentos genéricos e biossimilares?
Temos dois tipos de negociações. Uma com o Ministério da Saúde, e temos uma grande colaboração, mas queremos que haja um entendimento. A indústria dos medicamentos genéricos e biossimilares para fazerem o seu papel têm de ser sustentáveis e, não o sendo, não podem colaborar nesta sustentabilidade do SNS. Por outro lado, penso que o senhor ministro tem essa sensibilidade pela atuação que teve agora, vamos ver se continua. Segundo, temos de trabalhar com o Ministério da Economia. Um medicamento que é investigado, desenvolvido e fabricado em Portugal, se no modelo de formação do seu preço não lhe for acrescentado o valor económico que este produto traz, teremos um preço igual como se fosse importado. Qual é o interesse que as fábricas têm se podem importar e colocar cá? Criamos emprego altamente diferenciado, os melhores ordenados vêm da indústria farmacêutica, somos o setor mais produtivo, somos o que tem maior valor acrescentado, superior aos automóveis e ao aeroespacial. É preciso juntar as empresas com a tutela e com a academia para termos inovação e podermos evoluir.
Já propuseram alguma reunião ao ministro da Economia?
Estamos em reuniões, temos vindo a dialogar. Não temos ainda resoluções.
A atual conjuntura, marcada pelo aumento da inflação e a ameaça da perda do poder de compra dos consumidores, pode levar a uma maior procura pelo mercado dos genéricos nos próximos meses?
Acredito que sim, a nossa quota tem vindo a aumentar. Em novembro tínhamos uma quota de 49,2%, quando anteriormente era de 47%. Acredito que está no terreno.
Tendo em conta o plano que a APOGEN definiu até 2024, acredita que vai conseguir concretizar algum dos objetivos e que estarão em sintonia com o Ministério da Saúde?
Tenho confiança. Os medicamentos genéricos entraram em Portugal no ano de 2000 e se olharmos para países muito mais desenvolvidos e muito ricos, como a Alemanha, onde estes medicamentos entraram no mercado na década de 70. As quotas dos genéricos nestes países está nos 70%. Nós ainda temos caminho para fazer, não chegamos aos 50% e temos de trabalhar com a tutela, com as medidas que temos em cima da mesa, com mais formação. Como um medicamento genérico não faz promoção médica, não chega ao médico, chega só ao farmacêutico. Temos de fazer trabalho quer com publicidade, quer com outras formas que o Estado entenda que melhor chegarão ao médico para criar esta confiança. Temos de aumentar a quota, no mínimo, para 60% nos próximos quatro anos, para bem do cidadão, do SNS, e para bem da inovação para poder entrar nos armamentários terapêuticos.
*Com Joana Petiz