Corrupia. A “criança traquina” que quer recuperar a tradição da sidra

A bebida produzida a partir da maçã tem vindo a ganhar adeptos pelo mundo. Mas Marlene e Patrícia estão, sozinhas, a criar mercado em Portugal.

Corrupia significa “criança traquina” e foi o nome perfeito que Marlene Araújo e Patrícia Monte, de 28 e 29 anos, encontraram para batizar a sidra artesanal que produzem, desde 2015, em Ponte de Lima. A “criança” que as jovens empreendedoras de Viana do Castelo trouxeram ao mundo tem dado trabalho e noites sem dormir, mas já deu provas de compensar. Arrecadou vários prémios importantes em Espanha e o próximo grande desafio será criar mercado em Portugal.

“Nestes primeiros anos, temos andado tão focadas na produção, no engarrafamento e na participação em feiras que pouco tem restado para conseguirmos procurar clientes”, confessou Marlene Araújo. Localmente, explicou Patrícia Monte, “as pessoas conhecem bem a sidra, que costumava ser produzida para ser bebida enquanto não havia vinho, e faz parte da tradição das festas de Ponte de Lima, em setembro”. Mas, fora do Minho, “a maioria das pessoas associa sidra a uma certa marca comercial cuja bebida mais parece um refrigerante, com aditivos e adocicada”, ao passo que o produto original é um verdadeiro “vinho de maçã”, cuja acidez ou doçura varia conforme o ano e as variedades utilizadas.

“A ideia nasceu na sequência de uma palestra a que assistimos, quando estávamos a terminar a licenciatura em Biotecnologia, na Escola Superior Agrária de Ponte de Lima, onde ouvimos a história da cerveja artesanal Letra, de Vila Verde. Falámos com um professor para saber se haveria algo semelhante que pudéssemos produzir e ele disse-nos que a Câmara Municipal de Ponte de Lima estava a produzir sidra para escoar a produção do pomar da Quinta Pedagógica e que poderia ser uma oportunidade”, recordou Marlene Araújo.

Feito o contacto com a autarquia, as jovens receberam a proposta de ficarem elas encarregues de produzir a sidra, nas instalações municipais e com os equipamentos já adquiridos para a tarefa. Com a candidatura ao programa Passaporte para o Empreendedorismo, as jovens conseguiram estruturar e desenvolver o produto, a marca e o negócio durante um ano. Começaram por produzir mil litros, em 2015, duplicaram no ano seguinte e aventuraram-se a produzir o primeiro espumante de sidra. Logo em 2016, o produto foi galardoado com a medalha de prata pela revista asturiana La Sidra. No ano passado, a medalha do espumante passou a ser de ouro e o pequeno stock “esgotou muito rapidamente”. Restou apenas uma garrafa para memória futura da empresa.

Com um apoio do programa Investe Jovem, adquiriram equipamentos próprios e mudaram-se para a Antiga Cooperativa de Estorãos. Aumentaram a produção deste ano para os cinco mil litros e passaram a contar também com o parecer de um enólogo. Calculam que terão de chegar a “oito ou nove mil litros para entrar em velocidade cruzeiro”, mas só “dentro de um ou dois anos” conseguirão lá chegar. Uma das dificuldades estará na obtenção da melhor matéria-prima, ou seja, idealmente variedades regionais de maçã que estão inclusive em risco de desaparecer.

“Atualmente, estamos a utilizar maçãs comerciais, que podem não ter o melhor calibre ou aspeto para ir para o supermercado e que ajudamos a escoar. Mas as maçãs com que a sidra era originalmente produzida estão em vias de extinção. O professor Raul Rodrigues tem feito esforços para recuperar a variedade Agral e isso era o ideal para a sidra”, explicou Patrícia Monte. Atualmente, as jovens dependem da produção de três a quatro pomares da região. Para produzir cinco mil litros de sidra e espumante precisaram de 13 toneladas na última colheita. “Mas se conseguíssemos produzir 50 litros com maçã Agral, a sidra vendia-se muito melhor do que os 5000 litros feitos com maçãs comerciais”, calculou.

“A sidra era conhecida como vinho dos pobres, mas hoje em dia nem fica necessariamente mais barata de produzir do que o vinho, nem o preço final é tão baixo”, acrescentou Marlene Araújo. As garrafas de 5 cl custam cerca de 4€ e as de espumante variam entre 7€ e 10€, consoante o ponto de venda. Presente em algumas lojas no Porto, em Lisboa, na Madeira e nos Açores, a Corrupia vende-se também online e em feiras e eventos, onde as jovens se desdobram em explicações sobre o produto e fazem provas para divulgar a sidra.

“Muitos associam ao tal refrigerante que ganhou popularidade mais recentemente. Depois de provarem, veem que não tem nada que ver e as reações são muito díspares: uns gostam, outros detestam, alguns acham doce, outros acham amarga...”, lamentou Marlene Araújo. O esforço tem incluído parcerias com restaurantes e chefs, que sugerem “harmonizações” da sidra com certos pratos. “Em Espanha, onde a sidra é muito mais conhecida e consumida, já decidiram que é a bebida ideal para acompanhar com tapas. Por cá, ainda não existe essa associação gastronómica e estamos a trabalhar para descobri-la”, explicou.

Para ajudar a divulgar o produto e criar mercado, em Portugal, as empreendedoras têm feito um “duro trabalho de partir pedra”, onde o marketing de milhões em que algumas grandes marcas investem não está disponível. Surge, então, o apoio do projeto Empreendedorismo em Meio Rural na Região Norte (EMER-N), que inclui apoios financeiros europeus, mas também mentoria e consultoria prestada por especialistas em negócios. “Vamos dedicar-nos a essa parte agora, porque tem sido muito difícil, sozinhas, tratarmos desde a produção ao engarrafamento e às vendas”, avançou Marlene Araújo, comparando o cenário nacional com o do país vizinho, onde “já se fala em criar sidra com Denominação de Origem Protegida”. Parte do ânimo vai também nascendo do aumento de produtores de sidra artesanal, em Trás-os-Montes, no Alentejo ou no Algarve, que as contactam para troca de experiências. “Sabemos que, se formos mais, podemos ganhar escala e acabamos por criar mercado mais depressa. Mas, como fomos as pioneiras, acabamos por passar as maiores dificuldades e abrir caminho para os restantes.”

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