Já no novo ano, recordo uma reflexão minha de 2022: "A IA já não é uma tecnologia futurista, é uma tecnologia do hoje, que continua no presente e que irá afetar o futuro". A atualidade da temática dos desafios da inteligência artificial (IA) sob o espectro das regras da proteção dos dados pessoais, assim como o impacto que a mesma tem e terá nas nossas vidas, não se esgota em 2023 e vai continuar a ser tema de debate nos próximos anos.
O nosso dia a dia, desde a criação do primeiro computador digital eletrónico de grande escala (o ENIAC - Electrical Numerical Integrator and Calculator), em 1945, é afetado pela inteligência computacional nos mais elementares e triviais comportamentos. É o caso das compras online, da utilização de geolocalização, assistência ao cliente, pesquisas online, concessão de pedidos, análise e escolha de perfis, métodos produtivos industriais, marketing e publicidade. O comportamento manual tem vindo, de forma substancialmente transversal, a ser substituído pela intervenção da máquina, tornando os processos mais rápidos, mais produtivos, mais fiáveis e menos onerosos.
Transportando-nos para o presente, ainda o ano 2023 não tinha aquecido o lugar e o mundo assistia ao aparecimento triunfante de uma das maiores revoluções ao nível da tecnologia dita inteligente: o ChatGPT. Este mecanismo, desenvolvido pela empresa OpenAI, e que na gíria se designa por chatbot, permite através de um programa de computador responder a uma pessoa, mediante uma conversa, de forma tão natural como rápida, à resolução de problemas tão complexos como a programação ou solução de equações matemáticas, geração de textos sobre os mais variados e amplos temas, escrever um poema ou simplesmente criar uma receita inovadora combinando ingredientes. Se outrora a implementação e execução de sistemas de IA estava apenas ao alcance de alguns, o seu acesso está agora à distância de um clique para registo na plataforma para uso diário na vida pessoal ou laboral. Estamos perante a democratização do acesso à inteligência artificial. A ambição desta nova realidade não poupou na resposta dos gigantes da tecnologia e a Google encontra-se a preparar o lançamento do BARD como concorrente ao ChatGPT, Microsoft. Porém, o chatbot da Google estreou-se a apresentar informação errada. Verdade é que a Google salvaguardou esta possibilidade no anúncio ao serviço, que deixava claro que "o Bard pode, por agora, fornecer informações imprecisas ou inadequadas", tal disclaimer, não impediu uma queda bolsista abrupta da Google.
Contudo, tão grande é o benefício da tecnologia IA como a sombra do risco de impacto negativo sobre os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, para além dos riscos de informação altamente politizada e acentuando convicções erróneas se não a existir intervenção humana com elevada capacidade crítica e de constante escrutínio perante os algoritmos que lhe estão subjacentes. Se, por um lado, a IA nos poupa tempo, dinheiro e ajuda nas tomadas de decisões, por outro, é necessário garantir a conformidade com o direito das pessoas não ficarem sujeitas a nenhuma tomada de decisão, exclusivamente com base no tratamento automatizado através de um computador, incluindo a definição de perfis e que produza efeitos na sua esfera jurídica ou com afetação significativa de forma similar - direito este consagrado no Regulamento Geral da Proteção de Dados (artº 22), desde a sua aprovação em 2016. Este foi precisamente um dos desafios nos anos anteriores, e que se irá manter em 2023 e nos anos seguintes.
Na mesma linha de preocupação, o Comité Europeu da Proteção de Dados (CEPD) e a Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD), cientes do alto risco associado à utilização da IA, consideraram que a implementação de sistemas de inteligência artificial deve depender sempre da verificação e conformidade prévia com o RGPD e demais legislação aplicável. O CEPD e a AEPD apelaram ainda à proibição geral de sistemas de IA para o reconhecimento automático de características humanas em espaços acessíveis ao público, tais como o reconhecimento de rostos, a forma de andar, impressões digitais, ADN, voz, digitação e outros sinais biométricos ou de comportamento, em qualquer circunstância. Para estas duas entidades, a utilização do reconhecimento mediante IA poderá colocar em causa ou pôr fim ao anonimato nos espaços públicos, impactando a essência dos direitos e liberdades fundamentais de cada cidadão, contrários aos valores fundamentais da UE podendo levar à discriminação dos cidadãos. O cumprimento da legislação em vigor é um desafio constante que tem de ser devidamente endereçado, quer pelos responsáveis pelo tratamento, isto é, as empresas detentoras destes "Chats", quer pelos governos nacionais. Está em causa a Democracia e a Liberdade, valores constantemente ameaçados pelas mais diversas forças, de forma, por vezes, pouco clara e transparente. O entusiasmo com a novidade da IA é tal que a nossa capacidade critica pode ficar vulnerável.
Como vimos, a resposta à pergunta inicial é simples, embora o caminho seja complexo: com a democratização da IA, a regulação da inteligência artificial e a proteção e garantia dos dados dos cidadãos, serão certamente dois marcos importantes na redefinição do tratamento, manuseamento e circulação dos dados pessoais, devendo garantir-se, sempre, a proteção e valoração da privacidade enquanto um direito parte do catálogo dos direitos e liberdades fundamentais de cada Estado-Membro e, acima de tudo, dos pilares da União Europeia. O maior dos desafios às regras, aos princípios e aos direitos sobre o tratamento dos dados pessoais, prende-se com a existência de uma regulação sólida e harmonizada entre Estados, a nível europeu e mundial, que garantam e protejam os nossos dados e a nossa privacidade, para além da capacidade e da vontade forte de respeitar na prática o nosso sistema de valores tão dificilmente e duramente alcançados.
2023 será assim, claramente, um ano de mudança. Não é, por isso, demais relembrar que a base da proteção de dados pessoais deve ser uma constante. Só através do respeito pelos dados pessoais de cada cidadão poderemos conservar a Democracia e as liberdades (através dela) conquistadas.
Elsa Veloso, Advogada especialista em Privacidade e Proteção de Dados, Fundadora e CEO da DPO Consulting