Aos 34 anos, Rosanne Boyland não era particularmente interessada por questões políticas e às vezes partilhava piadas sobre o então presidente Donald Trump no grupo de mensagens da sua família. Poucas vezes tinha saído da Geórgia, onde morava. Estava sóbria há vários anos e a tentar navegar as dificuldades trazidas pela pandemia de covid-19. Era uma tia devota e uma irmã divertida.
A 6 de Janeiro de 2021, morreu debaixo de uma pilha de atacantes que tentavam entrar à força pela porta oeste do Capitólio.
A sua presença no violento ataque terrorista à casa da democracia norte-americana teria sido impensável um ano antes. A mulher que queria tornar-se uma conselheira de sobriedade para ajudar outros a vencer a toxicodependência passou por uma metamorfose que nem os amigos nem a família compreenderam verdadeiramente até à sua morte.
A mudança acontecera no Verão de 2021, quando Boyland começou a enviar vídeos, imagens e artigos conspiracionistas a familiares e amigos, falando sem cessar dos "escândalos" que tinha descoberto online. Em particular, Boyland passou a acreditar com fervor nos princípios do movimento QAnon, que acusa políticos democratas e celebridades de Hollywood de liderarem uma cabala satânica de pedófilos que inclui o consumo de sangue de crianças.
Depois da derrota de Donald Trump nas presidenciais, ficou convencida de que tinha ocorrido fraude maciça e que Biden não era o vencedor legítimo do sufrágio. O seu fervor levou-a a conduzir toda a noite de Atlanta até Washington, D.C., na companhia de um amigo. Morreu pisoteada às portas do Capitólio.
A forma como Rosanne Boyland foi radicalizada em apenas seis meses diz muito do poder incrível da desinformação que continua a permear as redes sociais, e da eficácia das estratégias de conversão online usadas por operacionais e milícias de extrema-direita. O problema foi identificado há muito e, ainda assim, continuamos sem soluções funcionais.
Acossadas, as maiores redes sociais tomaram algumas medidas que permitiram estancar a hemorragia temporariamente e serviram para enviar lunáticos para as franjas da internet. Não foi suficiente. Em especial no YouTube, um dos grandes responsáveis pela disseminação de teorias falsas e perigosas e uma das maiores máquinas de manipulação que estão acessíveis online.
Todavia, isto ultrapassa uma rede em particular. É uma crise com tentáculos gigantes, que está a derramar tinta para cima de toda a gente e a conspurcar o espaço público de uma forma tão grave que não sei se ele poderá ser higienizado num futuro próximo.
Apesar do impacto gravoso que tem tido na sociedade, o mar de desinformação em que vivemos é lucrativo para muita gente. E o dinheiro, a ambição, a influência política parecem pesar mais que a decência, a verdade e o bem comum.
"Isto é um problema global. Precisa de uma solução global", disse o director da International Fact-Checking Network, Baybars Orsek, ao Politico. A rede organizou uma carta aberta assinada por 85 grupos de verificação de factos que foi enviada à CEO do YouTube, Susan Wojcicki, apontando que o site é um dos "principais condutos" de desinformação para todo o mundo.
"O que não vemos é um grande esforço do YouTube para implementar políticas que enderecem o problema", escreveram os grupos. "Pelo contrário, o YouTube permite que a sua plataforma seja arma de arremesso usada por agentes sem escrúpulos para manipularem e explorarem outros, e para se organizarem e angariarem fundos."
A carta aberta tem implicações muito sérias que espelham o estado desesperado da luta contra a desinformação. O buraco do coelho está escancarado e as Alices caem por ele abaixo e vão aos trambolhões para uma realidade alternativa, um País das Mentiras onde toda a gente acredita num mundo ao contrário, julgando terem descoberto cabalas secretas.
Foi essa descida ao inferno da realidade distorcida que levou Rosanne Boyland, juntamente com mais 10 mil desenganados, a marcharem para o Capitólio e a atacarem a instituição da democracia. O que teria acontecido se tivessem conseguido chegar aos legisladores? A Nancy Pelosi? A Mike Pence? A "Grande Mentira" não é inócua e a desinformação não é uma estratégia de marketing. Precisamos de soluções que estanquem a hemorragia democrática de uma vez, antes que seja tarde demais.