Como é que o Facebook adivinha no que estou a pensar?

No intervalo de um dos jogos que Portugal não ganhou neste Europeu, uma amiga mencionou casualmente alguém que tinha experimentado botox. A conversa foi breve e inconsequente, mas nessa noite comecei a ver anúncios a botox no feed do Instagram. Não tinha feito pesquisas sobre isso nem estado perto de uma clínica de tratamentos de beleza. A coincidência foi ligeiramente arrepiante, tal como em tantas outras instâncias no passado em que pareceu inegável que alguém estava a ouvir conversas através do meu smartphone.

Como é possível que o Facebook, que detém o Instagram, possa adivinhar temas discutidos à mesa do café ou prever algo em que vamos pensar? Há uma teoria da conspiração segundo a qual Facebook, Google, Amazon e outras gigantes activam secretamente o microfone do smartphone para ouvirem as conversas dos utilizadores e mostrarem anúncios baseados nelas. Dois amigos falam de uma despedida de solteiro e começam a ver anúncios a fatos de cerimónia. Uma família discute opções para um carro novo e começa a ver anúncios a marcas automóveis.

A verdade é que não, o Facebook não regista conversas em áudio para personalizar anúncios. Seria uma tarefa altamente onerosa e impraticável, tendo em conta que a empresa tem uma audiência combinada de mais de 3 mil milhões de utilizadores.

Parece que conseguem adivinhar pensamentos e conversas porque têm algoritmos que são alimentados a toda a hora com dados de utilização e cospem perfis estupidamente precisos. Não só as aplicações detidas pelo Facebook seguem o comportamento dos utilizadores de forma constante como o relacionam com o dos seus amigos. Por exemplo, percebendo que o smartphone da amiga que está na mesa de café pesquisou realmente por botox, embora a pessoa que acabou por ver o anúncio nunca o tenha feito.

É esta monitorização assustadora que a Apple está a tentar limitar com as novas regras do iOS 14, que dificultam muito a capacidade dos programadores de rastrearem o que os utilizadores fazem dentro e fora das suas apps. O Facebook bateu-se de forma azeda contra a mudança, dizendo que ia causar toda a espécie de desgraças, e os resultados mostram alterações significativas.

De acordo com uma análise do Wall Street Journal, a transparência draconiana que a Apple passou a implementar empurrou os anunciantes do iOS para o Android, onde ainda reina um certo faroeste apesar de alguns apertos da Google. O jornal indica que os preços dos anúncios móveis direccionados aos utilizadores iOS caíram e os preços para utilizadores Android subiram.

O problema, segundo os anunciantes, é que perderam acesso aos dados granulares que tornavam os anúncios muito eficazes no ecossistema iOS, o que deixou de justificar os preços mais elevados. Os anúncios personalizados para Android estão agora 30% mais caros que para iOS, uma mudança inédita em mais de dez anos dos dois ecossistemas móveis.

As redes detidas pelo Facebook, que tem um domínio fortíssimo na publicidade digital, começaram a fazer alterações na forma como personalizam os anúncios, dando menos peso ao tipo de dispositivo e mais a dados contextuais, como hora do dia e conteúdo das aplicações. Não é difícil antever que, com alguma habilidade, será possível afinar os algoritmos para continuarem a acertar nas coisas em que as pessoas estão interessadas e nas tendências das suas conversas.

Os passos tomados pela Apple foram importantes - pelo menos agora os utilizadores podem decidir se querem ou não ser monitorizados - mas não basta uma empresa para mudar o estado de coisas. Sobretudo porque há muito se esbateram as linhas entre mostrar aos utilizadores aquilo em que estão interessados e influenciá-los activamente para uma série de comportamentos. A responsabilidade é enorme, e até aqui a maior parte dos líderes não mostraram estar à altura dela.

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