Eu li o Estatuto do SNS. Fiquei assustado. O Estatuto do SNS agrava os problemas do sistema de saúde. Não há garantia de coordenação, não há autonomia e sobretudo: não há solução para o seu desgoverno.
O SNS precisa de garantia de financiamento, só assim se saberá como planear os recursos. Um ministério, uma empresa ou uma qualquer organização, precisa de previsibilidade dos recursos. E quanto mais complexa é a organização, maior é a necessidade.
Vale a pena ler a entrevista que António Correia de Campos, antigo ministro da saúde do PS, e profundo conhecedor do setor, deu recentemente ao DN para compreender como chegamos a este ponto. Repare-se no que dizia este socialista há cerca de um mês: "Durante os três anos em que fui ministro (...) eles [os gestores do SNS] tinham o dinheiro quase todo desde o início e com isso aguentavam-se." O SNS, no tempo de Correia de Campos, era gerido com uma "ligeira" suborçamentação. Agora, explica o ex-ministro, "não lhes dão 90% desse dinheiro, dão-lhes 70% [do dinheiro necessário] (...). Isto é algo completamente absurdo e errado, porque o ministério tem despesas incompreensíveis e se o gestor não tem conhecimento real do dinheiro que vai ter, acaba por se desinteressar da gestão. Se souber que só vou ter 70% desinteresso-me da gestão e depois não gasto 70%, nem 90%, nem 100%, gasto 110%."
Passamos de uma fase de repressão da receita, com Correia de Campos, para uma política de cativação dos fundos.
Qual a solução que o Estatuto do SNS oferece para este controlo asfixiante? Nenhuma! O Ministério das Finanças continuará a gerir o sistema de saúde. Diz o Estatuto: "O financiamento do SNS é assegurado por verbas do Orçamento do Estado". Só o "investimento de capital" obedecerá a uma "planificação plurianual". De outra forma, o SNS continuará a ser gerido como uma benesse anual, que o orçamento sustenta, sem ter em conta as responsabilidades futuras. Neste Estatuto, o SNS não é visto como um serviço público ou um direito. A saúde é gerida como uma dádiva à população, oferecida se e só se houver dinheiro.
O que teria de estar no Estatuto para que a saúde fosse um bem público? Simples. As despesas correntes seriam financiadas num quadro plurianual, o SNS deveria ser financiado com receitas fiscais consignadas ou com contribuições diretas e que (idealmente) o Sistema Nacional de Saúde teria independência das Finanças, à semelhança da Segurança Social.
Mas além da falta de dinheiro, não se sabe quem mandará na Saúde. Pensará o leitor, não vai ser nomeado um CEO? Sim, mas as suas responsabilidades são repartidas com mais duas entidades (e nenhuma terá dinheiro próprio). Além do CEO vai-se manter a Administração Central do Serviço de Saúde (ACSS) e há ainda responsabilidades atribuídas às regiões de saúde - isto é, explica o mesmo ex-ministro socialista, "uma redundância completa". Quem mandará afinal? Ao invés de termos uma cabeça a liderar o SNS, teremos três - sem contar com o ministro da Saúde, aliás, o ministro das Finanças.
Em termos de recursos humanos a coisa também não fica resolvida. Os "Hospitais e centros de saúde vão ter mais autonomia" de contratação anunciou o Ministério da Saúde a 4 de agosto. Mas não é verdade. O que o Estatuto diz, e de forma ainda mais clara o comunicado de imprensa que o sustém, é que há um "regime excecional de contratação (...) sempre que" haja dificuldades de recrutamento. Isto não é autonomia. Autonomia seria poder planear, organizar, dirigir e controlar os recursos e a qualidade dos serviços prestados. O que o Estatuto diz é que não há liberdade contratual ou de gestão. Há um plano B - há autonomia "sempre que" alguma coisa correr mal.
Pior, os médicos que aderirem ao regime de dedicação plena terão de se comprometer com metas assistenciais e ficam impedidos de exercer funções de direção técnica, coordenação e chefia em instituições privadas. Ora, implicitamente está a dizer-se que o problema é a dedicação, não o salário. Ora isto é falso. Os médicos estão a sair do SNS para o privado ou para o estrangeiro, por questões remuneratórias. Ganha-se pouco a trabalhar para o SNS.
Para os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES), o Estatuto do SNS prevê que passam a ser "institutos públicos de regime especial", com autonomia administrativa e património próprio. O património próprio, infere-se, é o edifício e o mobiliário existente. Imagino que os stocks e o equipamento clínico também estejam incluídos. Mas sem receitas próprias, os ACES vão gerir o quê? Podem recuperar listas de espera, investindo um pouco mais? Compensa fazer horas extraordinárias? Podem comprar um equipamento? Com o novo Estatuto, os ACES não têm autonomia administrativa; têm delegação de competências. São direções de serviço.
Podia continuar já que o documento confunde sistematicamente resultados com processos e desejos com resultados. Mas prefiro terminar salientando o seguinte: Além deste monstro legislativo que dificultará a gestão do SNS no longo prazo, não há também resposta aos principais desafios de curto prazo. Não se vislumbra nenhuma ferramenta ou instrumento para recuperar o caos criado pela covid, para recuperar as crónicas listas de espera ou preparar a oferta de saúde para a normal pressão de inverno.
Será que vamos a tempo para salvar o SNS? Não com este estatuto.
* Filipe Charters de Azevedo é o coordenador do livro: "Uma Nova Lei de Bases para a saúde: uma proposta liberal", que sairá no próximo dia 15 de Setembro.