Os livros para crianças são na verdade livros para chonés - são desenhados para as crianças serem chonés. Estes livros partem do princípio de que o mundo conspira para sermos felizes. Que os "maus" são facilmente identificados por um qualquer defeito físico, são inseguros e são 100% maus - não há nada que se aproveita. O bem triunfa sem luta!
O trabalho de contar histórias à noite aos miúdos torna-se penoso. Farto de ler tanto disparate, há uns largos anos, quando os meus filhos eram pequenos, resolvi começar a ler aos meus filhos Michel Vaillant. Um dos primeiros álbuns era Michel Vaillant contra Steve Warson. A dada altura a L. pede para parar: "Papá, qual é o 'mau'?".
Com dificuldade expliquei que "não havia nenhum". Tratava-se de dois amigos que estavam em equipas contrárias. Nenhum era mau. Eram rivais - lutavam para mostrar qual seria o melhor numa corrida automóvel, mas sem maldade. Era apenas uma corrida. O ar de espanto da L. foi impagável.
Para complicar, o imaginário é terrível. Os animais falam e vivem nos anos 50. Com tudo o que isso implica. A sociedade é feita por tribos com os seus valores/princípios, que se respeitam, mas com segregação. Há licença para viver em conjunto, mas não há tolerância. Um respeitinho muito bonito.
Se é para estar neste registo o melhor é o Livro da Selva. O Mogli não tenta fazer as pazes com o Tigre mau. Mata-o. Esfola-o. E exibe a sua pele na Rocha do Concelho. Ah! Uma luta sem compromissos e sem tréguas para quem não as merece. A Foca Branca luta com milhares de focas de forma a obrigá-las a conhecerem uma ilha onde podem viver no paraíso, sem homens que as caçam. Não há nada como os clássicos para combater a falta de ambição.
Mais, as profissões são terríveis. São todos agricultorzinhos, pastorzinhos, cozinheirinhos, limpa chaminés, pilotos de aviõezinhos. Não há empresários, físicos, matemáticos, programadores e atuários. Não há escritores, historiadores... nada. Não há políticos. O mundo está fechado em carreiras concretas do pós-guerra. Não há criativos, profissões de futuro ou personagens com ambição de mudar o mundo.
Tudo é muito pequenino. O Martim quer um abraço. O Lobo (que já não é mau!) reformou-se. Não há inspiração nenhuma. E não há ambição - só queixumes e conformismo. Chonés!
Texto a propósito do Dia Mundial do Livro (primeira versão, não publicada, de 2017)
Filipe Charters de Azevedo é CEO da Data XL e da Safe-Crop