As badaladas do ano novo costumam dar fulgor a resoluções, promessas e listas de desejos, mas poucas vezes na História nos encontrámos num início tão consequente como este. A aurora de 2021, que marca também o início de uma nova década, coloca-nos perante uma encruzilhada colectiva.
Estamos prestes a concretizar uma campanha sem precedentes de vacinação, enfrentaremos uma dura recessão pós-pandemia, estamos a aproximar-nos do ponto sem retorno na crise climática e lidamos com a mais perigosa onda de desinformação da modernidade.
Gerd Leonhard, futurista alemão que lidera a The Futures Agency na Suíça, escreveu recentemente que "os próximos dez anos vão determinar o nosso futuro enquanto espécie." À primeira vista pareceu-me um exagero. Pensei em décadas tão determinantes quanto os loucos anos vinte do século XX, a Segunda Guerra Mundial nos anos quarenta, a conquista do espaço nos anos sessenta, o advento da www nos anos noventa. Todas as épocas enfrentam os seus perigos e desafios, e embora haja algumas mais pacíficas que outras, nenhuma década varre a Humanidade sem deixar marcas indeléveis.
Mas Leonhard tem razão no vaticínio. O futurista refere várias questões fundamentais, desde a recuperação pós covid-19 à desigualdade do "capitalismo desalinhado", as consequências indesejadas do avanço tecnológico e as alterações climáticas. Eu foco-me essencialmente neste último ponto, porque os outros são passíveis de resolução desde que haja vontade política.
A crise climática, no entanto, é o problema mais difícil de resolver, apesar de ser o mais premente de todos. A ela está associado tudo o que virá. Nunca na História da Humanidade houve uma ameaça existencial tão forte quanto esta, com a possibilidade real de chegar a um ponto sem retorno. Tudo aquilo que a Humanidade consegue dominar no planeta - e mais além - não é suficiente para garantir a continuidade da espécie se não formos capazes de reverter as alterações no clima, que é o que nos permite sobreviver.
Além disso, as outras questões de monta estão relacionadas com esta. O capitalismo selvagem é uma das causas da crise climática. A deterioração do ambiente e o total desrespeito pelas outras espécies e os seus habitats poderão, por sua vez, trazer mais pandemias e doenças mortíferas para os humanos. E o avanço tecnológico que não tiver por base a preservação da dignidade humana terá uma cadeia de valor destrutiva.
"O futuro é Pessoas Planeta Propósito e Prosperidade", disse Gerd Leonhard, "ou nenhum destes." Estamos mesmo num ponto em que é preciso destruir e reconstruir os sistemas que nos levaram à beira deste precipício, e apesar de Leonhard se afirmar um optimista, eu estou com dificuldade em ver sinais positivos que permitem olhar em frente com esperança.
O que vejo é o populismo a arrastar consigo pessoas que anteriormente estavam imunes às mensagens de ódio. O que vejo é o fechar de olhos quanto se aponta que a produção em massa e consumo desenfreado de animais têm consequências devastadoras e precisam de ser contidos. Vejo a inexistência de um patamar comum onde há um punhado de verdades que são respeitadas. Vejo a perseguição da vitória a todo o custo e a morte da meritocracia.
Para esta década que agora começa, precisamos destes dois tipos de cidadãos: os optimistas como Gerd Leonhard, que teorizam sobre a tecnologia humanista e como tirar a nossa espécie deste buraco, e os pessimistas como eu, que gritam constantemente que a casa está a arder.
A mudança é dura - mal conseguimos manter as resoluções de Ano Novo depois de Fevereiro, quanto mais atacar problemas estruturais. Só que, neste ponto da História, não vamos ter outra hipótese. Sabemos para onde temos de ir, precisamos é de fazer as escolhas certas. Sabendo agora que, se não mudarmos voluntariamente, as condicionantes externas vão fazê-lo por nós. Estamos num momento de inflexão, o que é tanto um risco de catástrofe como uma oportunidade de construir algo melhor. Espero que Gerd Leonhard tenha razão e nós sejamos capazes, como espécie, de estar à altura do que nos virá a acontecer.
Bem-vindos ao primeiro ano do resto das nossas vidas.