Ludwig van Beethoven já estava surdo quando compôs alguns dos seus melhores trabalhos, incluindo a 9ª Sinfonia ("Hino à Alegria"), que 160 anos mais tarde se tornaria no hino da União Europeia. O seu treino como compositor e a criatividade musical inesgotável permitiram-lhe compor músicas imortais: ouvia as notas dentro da sua cabeça. Foi nesta história que pensei quando, na abertura da conferência anual Musexpo para a indústria da música, em Los Angeles, se falou no impacto que os modelos de Inteligência Artificial generativa poderá ter não só na indústria, mas na capacidade criativa da Humanidade.
"Adoro o mundo da IA, é fascinante, mas receio que a IA se vai alimentar da criatividade que já existe no mundo hoje", apontou Vikram Mehra, diretor-geral da Saregama Music na Índia. "A IA não está a criar novo conteúdo, está a usar o melhor do que está disponível e a dar-vos um produto final", continuou. Mehra questionou o facto de os artistas não serem compensados por alimentarem estes sistemas e também expressou receios sobre o que vai acontecer à criatividade no longo prazo.
"Dentro de dez anos, será tentador para uma editora como a minha criar canções usando a IA, em vez de investir em novos artistas", sugeriu. "No final, é a criatividade que vai sofrer." E é isto que lhe tira o sono à noite.
Os receios que Mehra expressou nesta keynote de arranque da Musexpo são muito válidos, numa altura em que já é impossível destrinçar a tecnologia da distribuição e consumo de música. O que estava até agora mais ou menos reservado aos artistas era a criação. Sim, alguém com um computador já conseguia produzir música sem ter de ser um multi-instrumentista com quatro anos de conservatório. Mas a imaginação e a criatividade são as características humanas que sempre considerámos inatacáveis pelas máquinas. É isso que parece que está a mudar. E não é porque as máquinas passaram a ter capacidade de imaginação, apenas se tornou possível pegarem no que já existe e criar algo a partir daí.
É conteúdo novo? Os conteúdos que treinam os algoritmos deviam ser pagos? Qual a ética de usar arte já disponível para alimentar estes modelos? Todas estas questões são importantes e a boa notícia é que estão a ser colocadas antes que haja uma ultrapassagem pela direita e seja tarde demais.
Mas há uma questão existencial mais profunda no horizonte, a que Mehra também aludiu. O progresso tecnológico tem provocado mudanças sísmicas em todos os sectores de forma cíclica. Há profissões que se extinguem, processos que se perdem, tradições que sobrevivem apenas nos livros e nas histórias orais. O ser humano tem mostrado uma capacidade incrível de adaptação e transformação, criando novos empregos e novas indústrias com as cinzas das que se extinguiram.
No entanto, nunca estivemos tão próximos de uma era em que literalmente não temos de saber nem fazer nada apenas com as faculdades com que nascemos. Não temos de saber ler um mapa nem conseguir indicar para onde é o norte, porque o GPS aponta o caminho; não temos de saber fazer cálculos matemáticos, porque a calculadora do telemóvel e o conversor online fazem isso por nós; não temos de saber uma língua, porque o tradutor automático ingere o que dizemos e regurgita-o noutro idioma.
Não temos de memorizar datas, nomes, eventos ou batalhas históricas, porque o Google dá essa resposta em mili-segundos. Não temos de procurar conteúdos novos para ver, porque o algoritmo sugere o que vamos querer. A rede social recorda-nos das datas de aniversário. As escolhas Amazon dizem-nos o que comprar. E agora, há modelos que escrevem por nós, desenham por nós, e fazem música por nós.
Haverá quem olhe para isto e ache brilhante, porque tudo isto facilita as coisas e produz resultados em tempo recorde. Haverá quem arregale os olhos e deite as mãos à cabeça, receando que se esteja a criar condições para gerações futuras de humanos absolutamente ineptos e dependentes do que a máquina disser.
O potencial para dar asneira é enorme, assim como o de aproveitamento destas capacidades por agentes nefastos, com intenções perigosas. Falo não apenas de cibercrime mas também de manipulação de massas a um nível nunca antes visto nos milhares de anos de civilização. A IA pode tornar-se literalmente num Big Brother controlado por uma oligarquia política e tecnológica, da qual já temos um vislumbre.
Mas pode também abrir uma era nova de progresso e democratização, esbatendo as diferenças e dando oportunidades a quem nunca antes poderia aspirar a ter um lugar à mesa. A tecnologia, por si só, não é boa nem má. É a sua utilização e as salvaguardas colocadas em toda a volta que determinam as suas consequências.
Por isso, faz sentido colocar estas questões agora em vez de sermos apanhados na curva mais à frente. As indústrias criativas podem enfrentar com isto uma ameaça existencial ou uma transformação exponencial. Qual delas será? Não fiquemos à espera para ver o que acontece. Sob pena, como avisou Vikram Mehra, de dentro de cem anos tudo ser baseado no passado e "estarmos privados de qualquer coisa nova."