O triunfo do esquisito nos Óscares

Se me dissessem que um filme em que a rainha do horror Jamie Lee Curtis tinha salsichas em vez de dedos ia arrasar Steven Spielberg, James Cameron e Baz Luhrmann nos Óscares, teria perguntado se estavam loucos. Mas foi isso mesmo que aconteceu este fim-de-semana no Dolby Theatre, em Hollywood. Mais incrível ainda: o triunfo esmagador do filme absurdo "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo" já era mais ou menos esperado. A criação dos "dois Daniéis", Daniel Kwan e Daniel Scheinert, limpou esta temporada de prémios com uma voracidade que tornou a vitória nos Óscares inevitável.

Melhor Filme, Melhor Realização, Melhor Argumento Original e todas as categorias de representação menos Melhor Actor Principal, que foi entregue a Brendan Fraser por "A Baleia" (a Academia tem queda para as transformações incríveis, mas devia ter sido Austin Butler por "Elvis". Adiante).

Como é que este filme com uma história estonteante, uma protagonista chinesa de meia-idade e uma baguel malévola conseguiu este feito? Foi um triunfo do esquisito, sinceramente bem-vindo. Filmes estranhos que usam o absurdo para falar de coisas mais profundas costumam ficar-se pelos cinemas de esquina, talvez com críticas de apreço no programa da rádio NPR à sexta-feira, mas não se tornam grandes sucessos mundiais e sobretudo não varrem os Óscares.

A Academia tem, inclusive, uma certa alergia a premiações homogéneas. É raro que um filme saia da cerimónia com todas as estatuetas mais importantes, tão raro que podemos contar pelos dedos as vezes em que isso aconteceu. Houve "Ben-Hur" em 1959, houve "Titanic" em 1998, "O Senhor dos Anéis" em 2004 ou "Quem Quer Ser Bilionário" em 2008. Os prémios costumam ser divididos, individualizados. Não desta vez. A força de "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo" esteve no argumento, na edição incrível, na química entre os personagens e em interpretações individuais exímias.

E, além disso tudo, o simples facto de ser uma história que não vemos contada muitas vezes. Uma família de imigrantes. Uma família de asiáticos. Mulheres acima dos 60 anos. Heróis improváveis com problemas no IRS. A concorrência teve azar de aparecer num ano com um filme tão esquisito e estranhamente viciante. Nesse aspecto foi uma pena, porque "Tár", "Elvis" e "Os Espíritos de Inisherin" mereciam um pouco mais que a mão cheia de nada que tiveram.

Por outro lado, foi absolutamente delicioso assistir à exultação dos criadores e protagonistas de "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo" na sala de entrevistas, nos bastidores dos Óscares, por onde só faltou passarem os portugueses João Gonzalez e Bruno Caetano. Já se sabia que as hipóteses eram magras, dado o favoritismo de "The Boy, the Mole, the Fox and the Horse" e "My Year of Dicks." Ainda assim, ver os nomes portugueses aparecerem entre os nomeados no Dolby Theatre e ouvi-los a serem proferidos neste palco maior da indústria foi já um enorme orgulho.

Mas esta foi uma edição dos Óscares satisfatória, com vitórias históricas - destaque para Michelle Yeoh, a primeira asiática a vencer Melhor Actriz e apenas a segunda não branca a consegui-lo. Este facto mostra como é preciso quebrar barreiras e como a ascensão de histórias não brancas é ainda uma raridade. É por isso que falamos de noites assim com algum assombro. Celebramos o que está a ser feito com uma certa incredulidade que ainda falte tanto.

Graças aos dois Daniéis e aos membros da Academia que abraçaram esta história estranha, ficámos um pouco mais perto. Como disse Michelle Yeoh na sala de entrevistas, ela quebrou o tecto de vidro com um movimento de Kung-Fu. Ela, que andou tantos anos a ser excelente sem o reconhecimento devido, subiu a pulso até ao topo.

De caminho, esta equipa inusitada mostrou à Marvel como se explora o multiverso e como se usa o absurdo de forma substantiva. Venham mais filmes como este e menos sequelas com numerais romanos no título. Está oficialmente declarada a exaustão com as sequelas, prequelas e spin-offs.

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