Os liberais e a defesa do Estado

Um dos maiores e mais recorrentes equívocos nas redes sociais e nos media portugueses é a afirmação de que os liberais odeiam o Estado. Este ataque é quase diário, inclusive vindo de comentadores e opinion makers cuja experiência e fama lhes deveria obrigar a um pouco mais de atenção ao que os tais liberais efetivamente defendem. Por alguma razão parecem confundi-los com anarquistas e sempre que ouvem algum liberal a defender a intervenção do Estado aqui ou ali, excitam-se como se tivessem ganho a raspadinha da Cultura. Julgam até que quando um liberal exige que o Estado faça o seu trabalho, que estará a trair a sua causa. Temo informá-los que não é o caso. Tanto quanto sei, Hayek e Stuart Mill descansam impávidos e serenos quando Cotrim Figueiredo exige ao Governo que seja competente, cumpra as suas funções e acuda os portugueses.

Recentemente o liberalismo passou a ser tratado como o pecado na origem de todos os problemas do nosso país. Portugal, governado durante mais de quatro décadas por socialistas e sociais-democratas, apoiados ocasionalmente por democratas-cristãos, estalinistas e maoistas, vê todo o seu atraso explicado pelas políticas que nenhum destes partidos defende. A cavalgar esta hipocrisia temos o próprio Primeiro-Ministro António Costa que depois de seis anos no cargo e duas décadas entre deputado, ministro e edil da capital recusa qualquer responsabilidade sobre o estado a que chegou o país. Deslinda o mistério da nossa pobreza afirmando perentoriamente que "esta crise foi o maior atestado do falhanço das visões neoliberais".

Se é fácil demonstrar a impostura do primeiro-ministro, é mais complicado alertar o país para a mensagem distorcida que está a receber de muitas outras fontes sobre os fundamentos e objetivos do liberalismo. Se em Portugal os liberais são um fenómeno novo, o mesmo não acontece em muitos outros países, precisamente aqueles com superiores níveis de progresso económico e liberdade individual. É então importante que se compreenda e apreenda que os liberais não são contra a existência do Estado. Apenas procuram que o Estado seja capaz e eficiente nas suas funções centrais e que se procure imiscuir daquelas que não deveriam ser as suas incumbências. Aqui sim, está o cerne da questão: quais são as áreas em que o Estado deve efetivamente colocar a sua atenção? Peguemos em alguns exemplos drásticos, onde suponho que praticamente todos os portugueses concordarão: Na defesa nacional, desde o PCP até ao Chega, nunca vi uma única pessoa a defender que Portugal substituísse o seu exército por mercenários. Todos consideramos que é uma função central do Estado e que deve ser este a garantir a defesa do país, incluindo a contratação dos meios e recursos humanos necessários para o fazer. No seu oposto, todos os partidos aceitam a ideia de que os cabeleireiros devem ser privados. Embora seja um serviço importante para todos, não é, no entanto, uma função do Estado e só mesmo o mais soviético e obsoleto dos comunistas poderia defender tal interferência do poder político na economia, na liberdade individual e, literalmente, na cabeça das pessoas. Entre estes dois casos mais óbvios temos um infinito número de negócios, necessidades, gostos e vontades que em geral podem e devem ser satisfeitos pelo mercado em si, onde este conseguir responder adequadamente às necessidades do país.

Em geral os liberais são contra o salvamento da TAP pelo simples facto de a aviação comercial ser uma função facilmente assegurada por privados. Não é por acaso que poucos países têm hoje as tais "companhias de bandeira" e mesmo quando estas existem, tipicamente já pertencem a privados ou a conglomerados internacionais. Para além disso, os valores que têm sido avançados são de tal ordem que impedem o Estado de acudir a outras necessidades do país. Como bem chamava a atenção Tiago Mayan, no mesmo dia em que negoceia mais um auxílio para a TAP de 463 milhões de euros, o Governo anuncia um empréstimo para a totalidade do setor do Turismo no valor de 300 milhões. Uma só empresa parece representar mais para os interesses do Primeiro-Ministro do que o conjunto do setor.

Podem naturalmente existir funções ligadas à aviação que o Estado considera como sendo suas. Admitamos que o Governo decide que é importante que as ligações entre as regiões autónomas e o continente são cruciais para a coesão nacional. Para cumprir esse desígnio não é relevante se o piloto é um funcionário público ou se o avião tem escrito empresa pública na porta. Para o cidadão o importante é que essa viagem seja feita. Como opção, o governo pode, por exemplo, subsidiar todas as viagens entre as ilhas e o continente com um determinado valor e depois os privados que compitam entre si para a fazer. Ou contratualizar diretamente esse serviço. Opções há várias, sem necessidade de engordar ainda mais o Estado e a despesa pública. Isto permitiria ao Estado dedicar o seu tempo e energia a tarefas que só mesmo o Estado pode fazer.

Por outro lado, se a TAP fosse uma empresa lucrativa, seria perfeitamente aceitável que o Estado a ajudasse neste momento excecional, sabendo que com alguns anos de tranquilidade esse investimento poderia ser recuperado. Não é certamente o caso. Ao contrário de centenas de milhares de pequenas e médias empresas, a TAP já dava prejuízo ano após ano mesmo quando o turismo batia recordes e se tornava um dos maiores setores económicos de Portugal. Isto não é ser contra o Estado, mas sim defender que este deve usar os seus parcos recursos da melhor forma possível.

Uma das funções centrais do Estado é precisamente a intervenção em cenários extremos de catástrofe. Seja num incêndio, guerra, terramoto, crise financeira ou pandemia, o Estado é chamado a intervir usando a sua força para ajudar e recuperar o país, devolvendo-o a uma situação de normalidade e segurança tão rápido quanto possível.

Os restaurantes ou os sapateiros deram prejuízo em 2020 não porque fizeram algo errado, mas simplesmente porque o Governo (com toda a sua legitimidade democrática e por compreensíveis motivos de saúde pública) os impediu de operarem durante meses. Estas e outras empresas e famílias, que ano após ano pagam os seus impostos, podem e devem ser ajudadas, e estou certo de que assim que o pior da crise passar, voltarão a ser contribuintes líquidos gerando o emprego e crescimento de que o país tanto precisa. Não é nenhum favor que lhes é feito. Pelo contrário, o país deve-lhes agradecer o sacrifício que fizeram para controlar a crise pandémica. E não será mais que o cumprimento de um contrato social existente entre contribuintes e o Estado.

No imediato precisamos que o Estado cumpra as suas funções de último garante da saúde e da economia. A longo prazo, aquilo de que necessitamos é de um Estado focado nas suas funções de regulação, justiça, defesa e segurança. Que faça poupanças nos tempos bons para que tenha capacidade de resposta quando realmente precisamos dele. Que se comprometa com a saúde e educação de cada cidadão desde o início até ao fim da sua vida, sem fundamentalismo ideológico e utilizando toda a capacidade instalada no país.

Os recursos do Estado não são infinitos. Quanto mais o Estado se cingir às suas funções únicas e essenciais, mais capacidade terá para as resolver de forma capaz, evitando distrair-se com infinitas áreas de atuação, centenas de empresas e fundações estatais, assim como com as clientelas espalhadas por instituições públicas e privadas na sua órbita. Deve garantir a aplicação das leis de forma transparente, expectável e em tempo útil, em vez de insistir no arbitrário feudalismo administrativo em que Portugal vive há décadas. Nunca conheci um liberal que defendesse o fim do Estado. De todos, o que sempre ouvi foi uma exigência de um Estado mais focado, eficaz e eficiente.

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