Sobreviver às manhãs

Duas coisas que me irritam nos filmes americanos e nas telenovelas brasileiras (e que as portuguesas teimam em imitar): as manhãs harmoniosas dos paizinhos a fazerem panquecas ou ovos com bacon enquanto os filhos aparecem arranjados e lambidinhos sem que tenha sido dado um grito; as mesas dos pequenos-almoços brasileiros, onde abundam bolos fumegantes e sumos de todas as cores. Não existem fantasias maiores que aqueles dois cenários - ao pé disto qualquer filme do 007 é um facto histórico. Mas a verdade é que esta fantasia é nociva. Faz-nos mal, a nós, pais reais, que cresceram a fantasiar manhãs daquelas, filhos daqueles e mesas de pequeno-almoço assim. "Quando eu for grande vai ser assim...". Nada.

Cresci e só grito. Todas as manhãs constato que o fosso entre telenovelas e filmes e as minhas manhãs é cada vez maior, mais largo, mais fundo, mais abissal. Só esta semana, disse aos meus filhos que os devia ter inscrito num colégio interno - que seria mais feliz -, que ia ter um ataque de coração por causa deles à conta do desgaste, do desespero, da taquicardia que todas as manhãs eles me provocam. Assim, a pés juntos, sem piedade. Só esta semana, jurei que seria a última semana que os levava à escola, que chegava atrasada, que se deitavam tarde, que não os obrigava a preparem a roupa de véspera. Saí de casa com os olhos a lançarem faíscas, pronta para combater em qualquer guerra. Entrei num carro e agradeci a Deus que o meu Fiat não fosse um Leopard 1 ou teria esmagado filas e filas de trânsito que se atravessaram no meu caminho. Por fim, cheguei à escola, arrasada, mas está tudo deserto: já tocou, ninguém pode entrar e todos têm falta à primeira aula. E é vê-los a saírem moles do carro, porque não é nada com eles, porque ninguém os acordou a horas, porque as meias não estavam no sítio, porque não vinham a guiar, porque o trânsito não é culpa deles e amanhã é outro dia.

E eu morro mais um bocadinho.

A minha mãe nem se levantava da cama quando eu ia para a escola. E fomos as duas tão felizes. Eu não ouvia gritos, nunca levava casaco, comia o que me apetecia, tinha sempre a mochila pesada, se chegava atrasada a culpa era minha e as minhas manhãs eram de paz. Já a minha mãe, dormia mais um bocadinho, convicta de que eu ia sempre "agasalhada". Tantas coisas cinzentas daquelas manhãs de nevoeiro cerrado, com um frio de rachar, que afinal foram de luxo. O sossego, o silêncio, a liberdade, as poças congeladas, o nevoeiro a descer pela serra, o relógio da torre a avisar que faltavam cinco minutos para o segundo toque. E o pequeno-almoço? Pão com manteiga pelo caminho e leite com café em dois golos. Era feliz e não sabia.

Os meus meninos... é outra loiça - e eu também. Eu cresci a ver aqueles filmes e aquelas telenovela. A ambicionar aquelas manhãs. Só que aquilo, queridos pais, ao contrário do Rambo e do 007, é pura ficção. Por isso não tentem fazer o mesmo em casa ou podem pôr em risco a vossa saúde e a dos vossos membros familiares. De manhã, quanto menor interação, maior longevidade. Automatizem processos, estabeleçam horários rígidos, não falem uns com os outros e terão uma vida longa.

Jurista

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