Um país com memória de peixe

Diz-se que na política não há passado, só há futuro. Ninguém quer saber de águas passadas; águas passadas cheiram a águas paradas - cheiram mal. O que interessa é o que se segue. Senão, vejamos. Uma pessoa detém-se em Miguel Relvas num ocasional zapping televisivo e não deslinda neste novo empresário moderno e fashion aquele Relvas que sofreu bullying e foi vítima dos cartazes "Oh Relvas, vai estudar!". Este Relvas já não é o mesmo estudante. E, no entanto, parece que foi ontem que tudo aconteceu.

O Chega: quando apareceu o Chega, aos gritos, a espernear e a ameaçar pegar fogo à tenda, desconfiámos coletivamente que tinham aberto a porta ao demónio: era racista, irresponsável, perigoso, oportunista. E era. Mas hoje André Ventura é um estadista ministeriável, um senhor do regime, institucional e previsível. Não seria surpresa para ninguém se o víssemos amanhã a assumir a pasta da Administração Interna num estilo cândido e conciliador. O que lá vai, lá vai, dirão. E Ventura agradece.

Os socialistas em geral: uma pessoa assiste às esporádicas aparições de José Sócrates, ouve-o a defender-se, a insultar o Ministério Público ou os jornalistas em geral, e é com dificuldade que nos lembramos do líder que um dia foi. Do carisma que hipnotizou tantos jovens como Pedro Nuno Santos ou João Galamba - hoje senadores do regime, senhores doutores ilustres e institucionais, sem um vestígio da saudosa rebeldia hippie-chic ao estilo de Che. Nesta senda, é também com esforço que associamos os ilustres Santos Silva (presidente da Assembleia da República) ou António Costa (o nosso grande líder) a Sócrates e ao seu governo. No entanto, todos foram ministros, "homens de confiança", defensores intransigentes desse grande primeiro-ministro português que hoje vagueia pela sombra das ruelas da Ericeira.

E como estes, tantos outros socialistas que hoje ocupam as presidências de institutos públicos, empresas públicas, câmaras municipais e muitos mais organismos respeitáveis, mas um dia chegaram a ter mais fé em Sócrates do que os Pastorinhos em Nossa Senhora de Fátima.

Marcelo Rebelo de Sousa: tal como Jesus Cristo, renasce todos os dia e a toda a hora. Já foi tudo e hoje é da oposição. Sendo que amanhã pode ser novamente apoiante e o garante da estabilidade do governo. Quem sabe se o PRR, afinal, não está a ser bem executado? É o que calhar.

Entretanto, o país vai paralisando com greves, assiste-se à contestação em todos os setores e já percebemos que não há dinheiro para garantir o Estado Social, uma vez que a educação, a saúde, os transportes, a segurança social estão à beira do colapso. As pessoas vão desesperando com a inflação, os jovens emigram, as desigualdades agravam-se e vamos empobrecendo serenamente na esperança de um milagre.

Mas como em política não há ontem, o milagre não chegará - teremos sempre os socráticos reciclados ou, em alternativa, o PSD de sempre. Só que desta vez com uns óculos modernos.

Merecemos cada greve. Cada uma é também o castigo da nossa doentia falta de memória.

Jurista

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